O papel suporta qualquer coisa que se
deseje. Martius sabe. Suporta o desenho e o poema, o sonho de
liberdade e o medo, a cobrança e o pagamento da dívida. A palavra
escrita permanece, eis no que acredita, e por sua permanência está
convicto de que ela se confirma como superior à voz, que se dissipa,
que se perde tão logo é proferida. É preciso ter, portanto,
cautela com o que se escreve. Medir cada palavra, encontrar as vestes
que lhe cabem com exatidão, corrigir, reescrever, remendar as
falhas. Então, Martius escreve primeiro para suplantar a limitação
da memória, a evaporação da voz, depois pela obrigação com o rei
e principalmente para se convencer e convencer aos outros. Como se
não tivesse ido ao porto dos Miranhas negociar pessoas em desacordo
com Spix, ele documenta o seu desejo de verdade.
“Sem dúvida, o tuxaua não atribuiu a
minha vinda aqui com outro motivo que negociar prisioneiros;
custou-lhe, portanto, a compreender, quando lhe ofereci pelo
ornamento de penas, pelas armas e por uma bela samambaia, tantos
machados e facas. Ele acrescentou agora a esses presentes mais cinco
jovens índios, duas raparigas e três meninos. Desses desgraçados,
que aceitei das mãos do desumano, com tanto maior empenho, quanto
sabia que, ficando aqui, eles se destinavam sem cuidados à morte
certa, visto já estarem todos atacados da febre; a mais velha das
moças, levamo-la para Munique, duas outras entreguei-as ao sr.
Videira Duarte, comandante militar de Ega, e ao sr. Pombo, ouvidor do
Pará, e os outros dois, que já traziam o germe da morte, faleceram
de endurecimento do fígado e hidropisia durante a viagem.”
Martius rasura. Omite o destino do
menino. Precisa apagar rastros, estabelecer o lugar do corte entre o
vivido e aquilo que gostaria que tivesse acontecido. Ou dar apenas
aquilo que as pessoas precisam saber, parca ração da verdade. Toda
rasura é uma edição. Sem dúvida o ato é em si mesmo um fracasso,
e o cientista sabe disso, mas como se perceber aos olhos dos outros
sem a marca do heroico incontestável? Expurgar, desviar, eliminar a
variação torna-se um hábito para quem escreve ou reescreve a
história, especialmente a história dos outros, mas toda raspagem ou
borrão, toda nuvem de breu que cobre o desenho ou o primeiro escrito
deixa sua marca, seus vestígios. Dizem que onça não tem faro igual
ao de cachorro. Mas onça fareja a seu modo. Descobre resquício de
passagem da presa. A presa é, em geral, inepta para encobrir o
próprio rastro.
Eu, afortunadamente, vim para Manacapuru,
ali Juri, da família Comá-Tapüjaa, juntou-se a nossa tripulação,
acompanhou-nos a Munique.
“Quando regressei de Japurá para
Manacapuru, a corte de Zani (ele permanecera ainda doente em Ega), o
capataz me mostrou os índios sob o comando do seu senhor, dos quais
me foi permitido escolher um, que me atrevi a mostrar na Europa e
educar à humanidade europeia. Na manhã antes da nossa partida, os
índios homens apareceram enfileirados no pátio na frente da casa.
Apontei para um belo menino Juri, o capataz o tirou da fila. Era
filho do líder de uma horda indígena que morrera em combate.”
Martius recorda. Tem boa memória, mas,
passados dez anos da primeira linha à revisão da obra, já não
confia na imagem das mulheres que trataram sua febre na maloca, na
pasta escura e pegajosa que o xamã passou nas tumefações de seu
corpo. Prefere confiar na irritação que sentiu com a festa que o
povo fazia enquanto seu amigo, o capitão Zani, tremia de
impaludismo.
Martius escreve, coloca Iñe-e como
prisioneira dos miranhas. Parece-lhe amoral, ao tomar essa decisão
diante da folha em branco, o fato de ter aceitado como presente a
filha de um tuxaua. Parece-lhe melhor ter salvado a menina de um
horrível cativeiro. Parece-lhe melhor pintar o chefe como um
demônio. Como não seria se oferecia a filha a um desconhecido?
Palavras podem ser animais dóceis.
“Assim que anoiteceu, vimo-nos cercados
por várias centenas desses homens. Expôs-se ao meu olhar
horrorizado uma cena mais do inferno que humana: uma dança de
antropófagos depravados, exaltados pelo gozo do triunfo e pela
sensualidade. No meio desses filhos do apetite bestial desenfreado,
passamos as noites receosos e sem dormir: só de manhã, quando eles
se recolhiam às redes, ou iam para o banho, podíamos também
descansar. Durante o dia, poucos eram os que víamos desses
endemoninhados, pois estavam dispersos pela mata e em cabanas
remotas; mas logo ao cair da tarde surgiam eles de todos os lados e
enchiam a praça, entre o rio e as cabanas, com um monótono
sussurro, até ficarem bêbedos; então prorrompiam em berreiro feroz
e, finalmente, soavam seus discordantes instrumentos, e começava o
estrondo das canções e danças. Ainda se me confrange a alma,
quando me lembro da horrível degeneração desses brutos. Devo supor
que, durante a minha estada de algumas semanas entre esses selvagens,
todas as manifestações de sua vida desleixada passaram-me diante
dos olhos; mas senti tão dolorosa impressão da sua vizinhança,
que, se eu contasse as particularidades nas quais se manifesta a
característica dos mais rudes aborígenes brasileiros, também
causaria a mais penosa impressão aos meus leitores. Fiquei
persuadido de que esses selvagens não tinham ideia alguma do
Deus bondoso, pai e criador de todas as
coisas; que somente domina nos seus destinos um ente mau,
transformando-se em cada fatalidade, caprichoso e implacável, ao
qual se sujeitam em cego e inconsciente medo. A alma desses homens
primitivos decaídos não é imortal; ela apenas se manifesta na
existência, não conscientemente, e só a fome e a sede lhes lembram
as necessidades da vida. Justamente por isso, a vida não é
considerada por eles um grande bem, e a morte lhes é indiferente.
Com ela, tudo se acaba; só sobrevivem o ódio e a vingança como
espectros atormentadores. O laço do amor é frouxo; em vez de
ternura, cio; em vez de afeição, necessidade; os mistérios da
geração, profanados e às claras; o homem, por comodidade, meio
vestido; a mulher, escrava nua; em vez de pudor, vaidade; e o
casamento, um concubinato que se desfaz segundo o capricho; a
preocupação do pai de família é seu estômago; quando cheio este,
crua concupiscência; seu passatempo, glutonaria e ócio apático;
sua ocupação, irregularidade; o trabalho das mulheres, cego e sem
finalidade; os seus prazeres, repugnante lascívia; as crianças,
fardo dos pais e, por isso, evitadas; a afeição paternal, somente
cálculo, e a maternal, somente instinto; o pai de família,
descuidado e sem autoridade; a educação, brincadeira, imitativa da
mãe, cega despreocupação do pai; em vez de obediência filial,
medo; emancipação recíproca ao alvitre; para a velhice, em vez de
respeito, desafio; em vez de amizade, camaradagem; lealdade, enquanto
não há tentação; relações subordinadas ao egoísmo vacilante;
em vez de direito, a voz do egoísmo; em vez de patriotismo,
inconsciente confiança nos parentes da mesma língua; ódio
hereditário contra as tribos estranhas; mutismo, por pobreza de
ideias; indecisão, por falta de discernimento; o domínio do tuxaua,
por inaptidão dos demais, porém todos incapazes da verdadeira
obediência moral, assim como do comando: — eis como vive o
aborígene destas selvas! No mais primitivo grau da humanidade, é
deplorável enigma para si mesmo e para o irmão do Oriente, em cujo
peito ele não se anima, em cujos braços desvanece, tocado por
humanidade superior como de mau sopro, e morre. A 12 de fevereiro,
deixamos o porto dos Miranhas, lugar de cuja sombria impressão na
minha alma só me senti curado depois do regresso à Europa, à vista
da dignidade e grandeza humanas.”
Martius esquece o que escreveu. Ou não
esquece, mas quer esquecer. Deliberadamente, rasura. E a rasura
também é um método. Agora contempla o retrato de Iñe-e gravado na
pedra. Para que contemple essa imagem, foi preciso antes existir uma
pedra, que foi lixada em movimento infinito, em lemniscata, o
universo em eterna repetição. Depois as feições da menina
desenhadas em ponta de lâmina, o seu cabelo liso riscado ao meio,
pelos ombros, sua cabeça pendida, os olhos tristes e amendoados, os
lábios unidos, estampando sua resignação. Só depois o breu
pulverizado, a tinta, a impressão. A pedra colocada na superfície
da prensa, a manivela girando cuidadosamente para que a pedra não se
espatife sob a compressão. Martius escreve e raspa o que escreveu e
faz uma nova tentativa de verdade. Agora coloca na legenda a menina
como pertencente a M. J. do Paco, governador do rio Negro. Para ele
não há nome anterior a Isabella Miranha. Para ele, ela não tem
história.
O papel suporta tudo, Martius bem sabe.
Já velho, escreve em seu diário:
Eu apontei para o belo rapaz juri, o
capataz o retirou da fila e o pai do menino não o acompanhou; em vez
disso, seguiu-me com um olhar fixo: era uma pergunta ou era raiva? Eu
não me esqueci desse olhar.
Letras são animais que, depois de
domesticados, apenas obedecem, ele acredita.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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