Devo fazer ainda outra menção à
jaqueta que vestia.
E que se faça saber, à guisa de
introdução ao que se segue, que, para um marinheiro comum, viver a
bordo de um navio de guerra é como viver num mercado; onde você se
veste na soleira da porta e dorme no porão. Privacidade, não há;
nem sequer um momento de reclusão. Estar por algum instante sozinho
é quase uma impossibilidade física. Come-se numa enorme table
d’hôte; dorme-se num espaço coletivo, e a toalete se faz onde
e quando é possível. Não dá para pedir costeleta de carneiro e
uma jarra de clarete; tampouco escolher um quarto para o pernoite; ou
deixar dobradas as calças sobre o encosto da cadeira; nem tocar a
sineta numa manhã chuvosa para pedir o café da manhã na cama. É
como a vida numa enorme fábrica. O sino toca para o almoço e, com
ou sem fome, é preciso comer.
As roupas ficam comprimidas num saco
grande de lona, geralmente pintado de preto, que você pode tirar da
“prateleira” uma vez por dia, sob a penumbra da coberta, em meio
à enorme confusão de quinhentos outros sacos e quinhentos outros
marinheiros mergulhando dentro deles. Para evitar tamanho
inconveniente, muitos marinheiros dividem seus pertences entre macas
e sacos; guardando alguns suéteres e calças na primeira; de modo
que possam se trocar à noite, quando se faz silêncio nas macas. Os
ganhos nessa operação, porém, são mínimos.
Não há outro lugar, num navio de
guerra, para armazenar o que quer que seja, além do saco ou da maca.
Se você deixar qualquer coisa cair e se virar por um instante, as
chances de encontrá-la a seguir são de dez para uma.
Ora, ao preparar os planos preliminares e
organizar as fundações daquela memorável jaqueta minha, pensei em
todos esses inconvenientes e decidi enfrentá-los. A ideia era que
não apenas minha jaqueta me mantivesse aquecido, mas que também
fosse projetada de tal forma que guardasse uma ou duas camisas, um
par de calças e miudezas diversas — utensílios de costura,
livros, bolachas e coisas que tais. Com esse intento, a provi de
grande variedade de bolsos, à guisa de despensas, armário de roupa
e guarda-copos.
Os principais compartimentos, em número
de dois, localizavam-se nas fraldas da jaqueta, com ampla e
hospitaleira abertura interna; outros dois, de menor capacidade,
foram projetados em ambos os lados do peito, com abas retráteis que
os separavam, de modo que, em caso de emergência, havendo
necessidade de acomodar objetos maiores, pudessem se tornar um único
bolso. Havia ainda muitos outros recessos discretos por trás do
arrás; de modo tal que minha jaqueta, como um velho castelo,
mostrava-se repleta de escadas sinuosas e alcovas misteriosas,
criptas e gabinetes; e, como uma escrivaninha pronta a
confidencialidades, cheia de pequenos e inesperados nichos protegidos
e compartimentos secretos destinados a objetos de valor.
Além desses, eram quatro e espaçosos os
bolsos externos; dois deles para esconder livros, quando subitamente
desperto de meus estudos para atender à gávea; e outros dois para
enfiar as mãos em caráter permanente durante as frias vigílias
noturnas. Esse último expediente foi considerado inútil por um de
meus companheiros de posto, que me mostrou um projeto para luvas
marítimas que julgava muito melhor que o meu.
É preciso que se tenha em mente que os
marinheiros, mesmo sob o mais horrendo dos climas, cobrem as mãos
apenas quando estão fora de serviço; e jamais usam luvas nas
gáveas, uma vez que ali eles literalmente têm as vidas em suas
próprias mãos e nada querem entre estas e o cânhamo dos cabos ao
qual se agarram. Portanto, é desejável que, a despeito do que lhes
cubra as mãos, tal material possa ser posto e tirado num piscar de
olhos. Sim, é desejável que seja de tal natureza que, se apressado
numa noite escura — digamos, indo ao leme —, seja possível
enfiá-lo sem quaisquer impedimentos; e não como um par de luvas de
pelica especificamente costuradas para as mãos direita e esquerda,
sem jamais vestir a mão contrária à que serve.
O projeto de meu companheiro de gávea —
ele precisava tê-lo patenteado — era este: cada luva tinha dois
polegares, um de cada lado; conveniência que dispensa comentários.
Porém, se para marinheiros de primeira viagem, cujos dedos são
todos polegares, a descrição de tais luvas cai muito bem, para
Jaqueta Branca ela não era tão atraente. Pois, quando a mão estava
dentro da luva, o polegar vazio às vezes pendia para dentro da palma
da mão, causando confusão quanto ao paradeiro do polegar
verdadeiro; ou, doutro modo, estando cuidadosamente preso à mão,
sugeria continuamente a sensação sem sentido de que você estava o
tempo todo segurando o polegar de outrem.
Não, disse a meu bom companheiro de
gávea que desse o fora com seus quatro polegares, pois eu não tinha
o que fazer com eles; para qualquer homem, dois polegares bastavam.
Por algum tempo depois de finalizar minha
jaqueta e ocupar-lhe os espaços com toda a mobília e artigos de
despensa, pensei que nada seria capaz de superá-la em conveniência.
Agora eram poucas as vezes que eu tinha de visitar meu saco e ser
acotovelado e empurrado pela multidão que tinha o guarda-roupa
empilhado. Qualquer coisa que eu quisesse — roupas, agulhas, linha
ou literatura —, era mais do que provável que a encontrasse em
minha inestimável jaqueta. Digo-lhes com franqueza: chegava a
abraçar e festejar minha jaqueta; até que, ai!, uma chuva
prolongada levou-me a encará-la em sua crua realidade. Eu, e todos
os meus bolsos e o que neles trazia, ficamos completamente ensopados.
Minha edição de bolso de Shakespeare reduziu-se a uma omelete.
Servindo-me, entretanto, do belo dia que
se seguiu, esvaziei-a de meus pertences e espalhei-os para que
secassem. Porém, a despeito do sol que reluzia, foi um dia escuro
para mim. Os canalhas do convés viram-me no ato de me desfazer de
minha carga saturada; agora sabiam que a jaqueta branca era utilizada
como armazém. A consequência disso foi que, com meus pertences
devidamente secos e mais uma vez guardados em meus bolsos, na noite
seguinte, quando fazia meu turno de vigília no convés, não na
gávea (onde todos eram gente de bem), notei que havia um grupo de
homens a seguir-me sorrateiramente aonde quer que fosse. Sem exceção,
eram todos punguistas, empenhados em pilhar-me. Foi em vão que
apalpei continuamente os bolsos como um velho cavalheiro nervoso em
meio a uma multidão; naquela mesma noite me vi privado de vários
objetos de valor. Assim, por fim, concretei meus cofres e despensas;
e, exceto pelos dois bolsos que usava à guisa de luva, a partir dali
a jaqueta branca foi deles destituída.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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