Por volta das cinco da manhã de 28 de
outubro de 1967, no distrito inóspito entre a baía de São
Francisco e o estuário que a polícia de Oakland chama de Beat 101A,
um militante negro de 25 anos chamado Huey P. Newton foi parado e
interrogado por um policial branco chamado John Frey Jr. Uma hora
depois, Huey Newton estava sob custódia no hospital Kaiser em
Oakland, onde deu entrada para tratamento emergencial de um ferimento
a bala na barriga. Algumas semanas depois, ele foi indiciado pelo
tribunal do condado de Alameda, acusado de assassinar John Frey,
ferir outro policial e sequestrar um transeunte.
Na primavera de 1968, quando Huey Newton
estava aguardando julgamento, fui vê-lo na prisão do condado de
Alameda. Suponho que fui porque estava interessada na alquimia dos
problemas, e um dos problemas era o que Huey Newton se tornara àquela
altura. Para entender como isso aconteceu, você deve primeiro ter
Huey Newton em mente, quem ele era. Huey Newton veio de uma família
de Oakland, e, por um tempo, frequentou a faculdade em Merritt. Em
outubro de 1966, acompanhado de um amigo chamado Bobby Seale,
organizaram o que chamaram de Partido dos Panteras Negras. Pegaram o
nome emprestado do emblema usado pelo Partido da Liberdade do condado
de Lowndes, no Alabama, e desde o início se autodefiniram como um
grupo político revolucionário. A polícia de Oakland conhecia os
Panteras e tinha uma lista dos cerca de vinte carros dos membros. Não
estou alegando aqui que Huey Newton não matou John Frey. No contexto
das políticas revolucionárias, a culpa ou inocência de Huey Newton
é irrelevante. Só estou dizendo como ele foi parar na prisão do
condado de Alameda, e por que manifestações eram feitas em seu
nome, protestos organizados sempre que ele aparecia nas audiências.
Vamos lá, Huey, diziam os bótons (cinquenta centavos cada), e aqui
e ali nos degraus do tribunal, entre os Panteras com seus óculos de
sol e boinas, os cantos iam se elevar:
Pega o M 31.
Que a gente vai
Brincar com algum
BUM BUM. BUM BUM.
“Lute, irmão”, uma mulher
acrescentaria como em um amém bem-humorado. “Bangue-bangue.”
Palhaçada, palhaçada.
Não suporto o jogo
Que o branco está jogando.
Única saída, única saída.
BUM BUM. BUM BUM.
No corredor do térreo do tribunal do
condado de Alameda, havia uma aglomeração de advogados,
correspondentes da CBC, operadores de câmera e pessoas que queriam
“visitar Huey”.
“O Eldridge não vai se importar se eu
subir”, disse um dos últimos para um dos advogados.
“Se o Eldridge não se importa, por mim
tudo bem”, respondeu o advogado. “Se você tiver credenciais de
imprensa.”
“Minhas credenciais são meio
duvidosas.”
“Então não posso deixar você ir lá
em cima. O Eldridge tem credenciais duvidosas. Uma é ruim o
suficiente. Tenho boas relações de trabalho aqui, não quero ferrar
com isso.” O advogado se virou para um operador de câmera. “Já
estão gravando?”
Naquele dia em particular, fui autorizada
a subir. Um homem do Los Angeles
Times e um locutor de rádio subiram
comigo. Assinamos o registro policial, sentamo-nos a uma mesa de
madeira de pinho cheia de marcas e esperamos por Huey Newton.
“A única coisa que vai dar a liberdade
para Huey Newton”, dissera Rap Brown há pouco tempo em uma
manifestação dos Panteras no auditório de Oakland, “é o poder
das armas”.
“Huey Newton entregou a vida por nós”,
Stokely Carmichael dissera naquela mesma noite.
Porém, é claro que Huey Newton ainda
não havia entregado a vida de maneira alguma. Estava na prisão do
condado de Alameda esperando para ser julgado, e me perguntei se o
rumo que essas manifestações estavam tomando tinha alguma vez
deixado Huey preocupado, com a suspeita de que, em muitos sentidos,
ele era mais útil para a revolução atrás das grades do que na
rua. Quando enfim chegou, Huey parecia um jovem extremamente
simpático, envolvente e franco. Não tive a impressão de que
pretendia virar um mártir político. Ele sorriu para nós, esperou o
advogado (Charles Garry) preparar um gravador e conversou baixinho
com Eldridge Cleaver, que na época era ministro da Informação dos
Panteras Negras. (Huey Newton era o ministro da Defesa.) Eldridge
Cleaver usava um suéter preto e um único brinco de ouro. Falava de
forma arrastada, quase inaudível, e estava autorizado a ver Huey
Newton porque tinha aquelas “credenciais duvidosas”: um crachá
de imprensa da Ramparts. O interesse dele era conseguir “declarações”
de Huey Newton, “mensagens” para levar para o mundo lá fora; era
receber um tipo de profecia para ser interpretada de acordo com a
necessidade.
“A gente precisa de uma declaração,
Huey, a respeito do programa dos dez pontos”, disse Eldridge
Cleaver. “Então vou fazer uma pergunta, entende, e você
responde…”
“Como o Bobby está?”, quis saber
Huey Newton.
“Ele tem uma audiência de delitos
menores, entende…”
“Achei que ele tinha sido acusado de
crime grave.”
“Bom, essa é outra coisa, a acusação
de crime grave, ele também conseguiu algumas por delitos menores…”
Assim que Charles Garry tinha preparado o
gravador, Huey Newton parou de conversar e começou a palestrar,
quase sem parar. Ele falou, embolando as palavras, porque as tinha
pronunciado tantas vezes antes, do “sistema
capitalista-materialista dos Estados Unidos”, da “assim chamada
livre iniciativa” e “da luta por liberdade das pessoas negras em
todo o mundo”. Vez ou outra, Eldridge Cleaver fazia um sinal para
Huey Newton e dizia algo como: “Há um bocado de gente interessada
no Mandato Executivo Número Três que você emitiu para o Partido
dos Panteras Negras, Huey. Gostaria de comentar alguma coisa?”
Lógico que Huey Newton ia comentar.
“Sim. O Mandato Número Três é essa
reivindicação do Partido dos Panteras Negras falando pela
comunidade negra. A partir dele, a gente admoesta a força policial
racista…”
Eu queria que ele falasse de si mesmo,
esperando romper o muro retórico, mas Huey parecia ser um daqueles
autodidatas para quem todas as coisas específicas e pessoais se
apresentam como campos minados a serem evitados às custas da
coerência, para quem a segurança reside na generalização. O homem
do jornal e o homem do rádio tentaram:
Pergunta: Nos diga alguma coisa a seu
respeito, Huey, e me refiro à sua vida antes dos Panteras.
Resposta: Antes dos Panteras minha
vida era bem parecida com a da maioria das pessoas negras deste país.
P. Bom, sua família, alguns
incidentes que você recorda, as influências que moldaram você…
R. Viver nos Estados Unidos me moldou.
P. Bom, sim, mas de forma mais
específica…
R. Isso me lembra de uma citação do
James Baldwin: “Ser negro e consciente nos Estados Unidos é viver
em um estado de raiva constante.”
“Ser negro e consciente nos Estados
Unidos é viver em um estado de raiva constante”, Eldridge Cleaver
escreveu em letras enormes em um bloco de notas, e aí acrescentou:
“Huey P. Newton citando James Baldwin.” Podia visualizar
isso estampado acima da plataforma dos alto-falantes em uma
manifestação, impresso no papel timbrado de um comitê ad hoc ainda
por nascer. A bem da verdade, quase tudo que Huey Newton dizia tinha
cara de ser uma “citação”, um “pronunciamento” para ser
utilizado quando a oportunidade surgisse. Eu tinha ouvido Huey P.
Newton Sobre o Racismo (“O Partido dos Panteras Negras é contra o
racismo”), Huey P. Newton Sobre o Nacionalismo Cultural (“O
Partido dos Panteras Negras acredita que a única cultura pela qual
vale a pena lutar é a cultura revolucionária”), Huey P. Newton
Sobre o Radicalismo Branco, Sobre a Ocupação Policial do Gueto,
Sobre o Europeu Versus o Africano. “O europeu começou a
ficar doente quando negou a natureza sexual”, disse Huey Newton, e
nesse ponto Charles Garry o interrompeu, conduzindo a pauta de volta
ao essencial. “Mas não é verdade, Huey, que o racismo começou
por razões econômicas?”
Essa interlocução estranha pareceu
assumir vida própria. Estava quente naquele cômodo pequeno, a luz
fluorescente me incomodava e eu ainda não sabia em que medida Huey
Newton entendia a natureza do papel para o qual fora escalado. Por
acaso eu sempre gostei da lógica da posição dos Panteras, baseada
na proposição segundo a qual o poder político começava no final
do cano de uma arma (as armas exatas já tinham até sido
especificadas em um memorando anterior de Huey P. Newton: “carabina
.45 do Exército; espingarda Magnum calibre 12 com cano 18, de
preferência da marca High Standard; M-16; pistolas Magnum .357;
P-38”), e também conseguia apreciar a beleza de considerar
Huey Newton um “problema”. Nas politicagens da revolução, todo
mundo era descartável, mas eu duvidava de que a sofisticação
política de Huey Newton pudesse se alargar até ele ver a si mesmo
dessa forma. É fácil enxergar o valor de um caso Scottsboro quando
não se é um menino Scottsboro. “Há mais alguma coisa que queiram
perguntar para Huey?”, indagou Charles Garry. Não parecia haver. O
advogado ajustou o gravador. “Tenho um pedido, Huey, de um
estudante do ensino médio, repórter do jornal da escola. Ele queria
uma declaração sua, e vai me telefonar hoje à noite. Gostaria de
me confiar uma mensagem para ele?”
Huey Newton fitou o microfone. Houve um
momento em que pareceu não lembrar o xis da questão, então se
iluminou. “Gostaria de destacar”, falou, a voz ganhando volume à
medida que os discos de memória eram ativados, ensino médio,
estudante, juventude, mensagem para a juventude, “que os
Estados Unidos estão se tornando uma nação muito jovem…”.
Ouvi um gemido e um lamento. Fui
checar e… esse cara negro estava lá. Tinha sido baleado na barriga
e não parecia estar em sofrimento insuportável, então eu disse que
ia avaliar o ferimento. Perguntei para ele se era um Kaiser, se era
do Kaiser, e ele respondeu: “Sim, sim. Chama um médico. Não vê
que eu estou sangrando? Levei um tiro. Agora traz alguém aqui.”
Perguntei se tinha o crachá do Kaiser
e ele ficou perturbado com isso.
“Qual é? Traz um médico aqui. Eu
levei um tiro.”
“Estou vendo, mas você não parece
estar em nenhum sofrimento insuportável.”
Então eu disse que a gente precisava
conferir para ter certeza de que ele era um membro. […] E isso meio
que o perturbou ainda mais. Ele me chamou de alguns nomes feios e
falou: “Traz um médico aqui agora mesmo, levei um tiro e estou
sangrando.” Então tirou o casaco e a camisa, e os jogou ali no
balcão. “Não está vendo esse sangue todo?”
“Estou.” Não era tanto assim,
então respondi: “Bom, você tem que assinar a ficha de admissão
antes de um médico examinar você.”
“Não vou assinar nada.”
“Você não pode ser examinado por
um médico a menos que assine a ficha de admissão.”
“Não tenho que assinar nada”, e
esbravejou mais umas poucas e boas.
Esse é um excerto do testemunho, perante
o tribunal do condado de Alameda, de Corrine Leonard, a enfermeira
encarregada da emergência do hospital da Fundação Kaiser, em
Oakland, às 5h30 da manhã do dia 28 de outubro de 1967. Claro que o
“cara negro” era Huey Newton, ferido naquela manhã durante o
tiroteio que matou John Frey. Por um bom tempo deixei uma cópia
desse testemunho fixada na parede do escritório, seguindo a teoria
de que ilustrava um choque de culturas, um exemplo clássico de
alguém historicamente excluído confrontando a ordem estabelecida em
seu nível mais mesquinho e impenetrável. Essa teoria foi
esmigalhada quando soube que Huey Newton era, de fato, um membro
registrado do Plano de Saúde da Fundação Kaiser, ou seja, nas
palavras da enfermeira Leonard, “um Kaiser”.
Joan Didion, in O álbum branco
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