Nesse período, eu estava morando em uma
casa enorme na parte de Hollywood que um dia fora cara, mas que agora
era descrita por um de meus conhecidos como a “vizinhança da
matança sem sentido”. A casa na Franklin Avenue era alugada. A
tinta descascava dentro e fora da residência, canos quebravam,
caixilhos de janelas desmoronavam e a quadra de tênis não era
aplainada desde 1933, mas havia muitos quartos, o pé-direito era
alto e, ao longo dos cinco anos que morei ali, até mesmo a inércia
um tanto sinistra da vizinhança sugeria que eu viveria naquela casa
para sempre.
Mas eu não podia. Os donos estavam só
esperando por uma mudança de zoneamento para pôr a casa abaixo e
construir um prédio de apartamentos de luxo. Aliás, era essa
destruição iminente, mas não imediata, que dava um caráter
especial à vizinhança. A casa do outro lado da rua havia sido
construída por uma das irmãs Talmadge, fora o consulado japonês em
1941 e agora, apesar de fechada por tábuas, era ocupada por alguns
adultos sem relação de parentesco que pareciam formar algum tipo de
grupo terapêutico. A casa ao lado pertencia à Synanon. Lembro-me de
uma casa na esquina com uma placa de “Aluga-se”: o imóvel havia
sido o consulado canadense, contava com 28 quartos grandes e dois
closets refrigerados cheios de casacos de pele. Fazendo jus à
vizinhança, só podia ser alugada em caráter mensal, desmobiliada.
Uma vez que a disposição de alugar uma casa desmobiliada de 28
quartos por um mês ou dois é nitidamente extraordinária, a
vizinhança era povoada sobretudo por bandas de rock, grupos
terapêuticos e mulheres bem velhinhas, cujas cadeiras de rodas eram
empurradas rua abaixo por enfermeiras em uniformes sujos. Além, é
claro, de meu marido, minha filha e eu.
Pergunta: E o que mais aconteceu, se
aconteceu…
Resposta: Ele disse que achava que eu
podia ser uma estrela, tipo, sabe, um jovem Burt Lancaster, esse tipo
de coisa.
P. Ele mencionou algum nome em
especial?
R. Sim, senhor.
P. Qual nome?
R. Ele mencionou uma série de nomes.
Ele falou de Burt Lancaster. Falou de Clint Eastwood. Falou de Fess
Parker. Mencionou um monte de nomes…
P. Vocês conversaram depois de comer?
R. Enquanto a gente comia, depois de
comer. O sr. Novarro viu nossa sorte nas cartas e leu nossa mão.
P. Ele disse que você ia ter uma
sorte tremenda, ou má sorte, ou o que aconteceu?
R. Ele não era bom em ler mãos.
Esses são trechos do testemunho de Paul
Robert Ferguson e Thomas Scott Ferguson, irmãos com 22 e 17 anos
respectivamente, durante o julgamento pelo assassinato de Ramon
Novarro, de 69 anos, na casa dele em Laurel Canyon, não muito longe
da minha em Hollywood, na noite de 30 de outubro de 1968. Acompanhei
esse julgamento de perto, recortando matérias de jornais e depois
pegando uma transcrição emprestada com um dos advogados de defesa.
O mais novo dos irmãos, “Tommy Scott” Ferguson, cuja namorada
testemunhou que deixou de estar apaixonada por ele “mais ou menos
duas semanas após o julgamento”, não conhecia a carreira do sr.
Novarro como ator de filmes mudos até ter visto, a certa altura da
noite do assassinato, uma fotografia do anfitrião como Ben-Hur. O
irmão mais velho, Paul Ferguson, que começou a trabalhar em parques
de diversões quando tinha 12 anos e descrevia a si mesmo aos 22 como
tendo tido “uma vida agitada e boa”, deu ao júri, a pedidos, sua
definição de malandro: “Um malandro é alguém que sabe conversar
— não só com homens, com mulheres também. Que sabe cozinhar.
Sabe fazer companhia. Lavar um carro. Várias coisas formam um
malandro. Tem um monte de gente solitária nessa cidade, cara.” Ao
longo do julgamento, cada um dos irmãos acusou o outro do
assassinato. No fim, os dois foram condenados. Li a transcrição
várias vezes, tentando ver o cenário por um ângulo que não
sugerisse que eu vivia, como o relatório psiquiátrico apontou, “em
um mundo de pessoas movidas por impulsos estranhos, conflitantes, mal
compreendidos e, acima de tudo, tortuosos”. Nunca conheci os irmãos
Ferguson.
Conheci uma das figuras centrais de outro
julgamento de assassinato do condado de Los Angeles durante aqueles
anos: Linda Kasabian, principal testemunha de acusação no que ficou
conhecido popularmente como “Julgamento Manson”. Certa vez,
perguntei a Linda o que ela achava da sequência de eventos
aparentemente fortuita que a levou ao Spahn Movie Ranch e então à
penitenciária de Sybil Brand sob a acusação, depois retirada, de
assassinar Sharon Tate Polanski, Abigail Folger, Jay Sebring, Voytek
Frykowski, Steven Parent e Rosemary e Leno LaBianca. “Tudo acontece
para me ensinar algo”, respondeu Linda. Ela não acreditava que o
acaso fosse desprovido de padrão. Linda agia de acordo com o que
identifiquei posteriormente como teoria dos dados. Aliás, durante
aqueles anos, eu agia da mesma maneira.
Talvez o clima daqueles anos fique mais
evidente se eu disser que, ao longo deles, eu não conseguia visitar
minha sogra sem desviar os olhos de um poema emoldurado, uma “prece
para o lar”, que ficava pendurado em um corredor da casa dela em
West Hartford, Connecticut:
Deus sustente os cantos deste lar
E bem-aventurado seja o batente
E sustente a lareira e sustente as
tábuas
E sustente cada ambiente
E sustente a janela de cristal que
deixa
a luz das estrelas entrar
E sustente cada porta que abre bem,
para o estranho
e o familiar.
Esse poema me dava calafrios. Aquilo
parecia o tipo de detalhe “irônico” de que os repórteres se
apoderariam na manhã em que os corpos fossem encontrados. Em minha
vizinhança na Califórnia, a gente não tinha uma “prece para o
lar”, não abençoávamos as portas que se abriam para o estranho.
Paul e Tommy Scott Ferguson eram os estranhos na porta de Ramon
Novarro, em Laurel Canyon. Charles Manson era o estranho na porta de
Rosemary e Leno LaBianca, em Los Feliz. Alguns estranhos batiam à
porta e inventavam uma razão para entrar: uma ligação, por
exemplo, para a companhia de seguros a respeito de um carro que não
estava à vista. Outros só abriam a porta e entravam, e eu ia me
deparar com eles no saguão. Lembro-me de perguntar a um desses
estranhos o que ele queria. Olhamos um para o outro pelo que pareceu
um tempo enorme, e então ele viu meu marido no primeiro degrau da
escada. “Entrega de frango frito”, respondeu por fim, mas não
tínhamos pedido frango. Ele também não segurava nada. Peguei o
número da placa do furgão dele. Ao longo daqueles anos, eu estava
sempre anotando números de placas de furgões, veículos dando a
volta no quarteirão, estacionados do outro lado da rua, ou em ponto
morto no cruzamento. Colocava esses números na gaveta de um toucador
onde poderiam ser encontrados pela polícia quando o momento
chegasse.
Nunca duvidei de que o momento ia chegar,
pelo menos não nos lugares inacessíveis da mente, onde cada vez
mais eu parecia viver. Tantos encontros naqueles anos eram
desprovidos de qualquer lógica, exceto a fantasiosa. No casarão da
Franklin Avenue muita gente parecia entrar e sair sem qualquer
relação com aquilo que eu fazia. Sabia onde os lençóis e as
toalhas eram guardados, mas nem sempre sabia quem estava dormindo em
cada cama. Tinha as chaves, mas não a chave. Lembro-me de tomar um
Compazine de 25 miligramas em um domingo de Páscoa e preparar um
almoço enorme e sofisticado para algumas pessoas, muitas das quais
ainda estavam lá na segunda-feira. Lembro-me de andar de pés
descalços o dia inteiro no piso de madeira gasto daquela casa e
lembro-me de “Do You Wanna Dance” na vitrola, “Do You Wanna
Dance”, “Visions of Johanna” e uma música chamada “Midnight
Confessions”. Lembro-me de uma babá dizendo que viu a morte em
minha aura. Lembro-me de conversar com ela a respeito daquilo, de lhe
pagar, abrir todos os janelões e ir dormir na sala.
Era difícil me surpreender naqueles
anos. Era difícil até mesmo conseguir minha atenção. Estava
absorvida por minha intelectualização, meus dispositivos
obsessivo-compulsivos, minha projeção, minha formação reativa,
minha somatização e pela transcrição do julgamento dos Ferguson.
Um músico que eu conhecera alguns anos antes me ligou de um hotel em
Tuscaloosa para contar como poderia me salvar com a cientologia.
Tinha encontrado com ele uma vez na vida, conversado por talvez meia
hora sobre arroz integral e tabelas, e agora ele estava me falando do
Alabama de E-metro e de como eu podia ficar “limpa”. Recebi uma
ligação de um estranho em Montreal que parecia querer me recrutar
para uma operação de narcóticos. “É tranquilo falar nesse
telefone?”, perguntou várias vezes. “O Grande Irmão não está
ouvindo?”
Disse que duvidava, embora cada vez
duvidasse menos.
“Porque o que a gente está falando, no
fundo, é de aplicar a filosofia zen a dinheiro e negócios, sabe? E
se eu digo que a gente vai financiar o submundo, e se menciono
dinheiro grande, você sabe do que estou falando, né? Você sabe o
que está pegando, né?”
Talvez ele não estivesse falando de
narcóticos. Talvez estivesse falando de gerar lucro com rifles M-1.
Eu havia parado de procurar a lógica naquelas ligações. Em 1968,
uma pessoa com quem eu tinha estudado em Sacramento, e visto pela
última vez em 1952, apareceu em minha casa em Hollywood como
detetive particular de West Covina, uma das poucas mulheres
habilitadas do estado da Califórnia. “Chamam a gente de Dick Tracy
sem pau”, disse ela, em tom preguiçoso, mas espalhando o jornal do
dia na mesa do saguão. “Tenho um monte de amigos bem próximos
entre as autoridades policiais. Talvez você queira conhecer alguns
deles.” Trocamos promessas de manter contato, mas nunca mais nos
vimos. Um encontro nada atípico daquele período. Os anos 1960
tinham terminado antes de me ocorrer que essa visita pode não ter
sido exclusivamente social.
Joan Didion, in O álbum branco
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