Tenho idade suficiente para me lembrar
dos antigos telefones rotatórios, aqueles em que a gente tinha que
pôr o dedo no número para “discar”. Imagino que a maioria das
crianças de hoje não saberia o que fazer com um deles. Já meus
avós, se eu pudesse trazê-los de volta à vida, não teriam a menor
ideia do que fazer com um telefone celular. Ao mudar como vivemos
nossas vidas, a tecnologia também nos muda, irreversivelmente.
Continuando com o telefone como
ilustração, uma transformação profunda ocorreu na sociedade nos
últimos quarenta anos, mais ou menos o período da transição entre
os telefones rotatórios e os celulares. No caso dos rotatórios, a
família dividia um único número, o número de casa. Raramente,
famílias tinham mais de um número na mesma casa. Se alguém
estivesse usando o telefone, você tinha que esperar a vez. A linha
estava ocupada. Já os celulares são aparelhos pessoais. O telefone
é seu. Ao contrário de uma caneta ou até um carro, a verdade é
que ninguém gosta de dividir o celular com outro. As pessoas não
gostam nem que outros olhem o seu, imagine usá-lo. Por que isso?
A resposta mais imediata é que o celular
não é meramente um aparelho que você usa para se comunicar com
outros ou para se conectar com a internet. O celular é uma extensão
digital de quem você é. Ele faz parte da sua pessoa. Você e a
máquina são um. Não acredita? Imagine que, numa reunião no
trabalho ou com amigos, você compare os celulares de todo mundo. (Se
deixarem, claro.)
Esquece os modelos que cada um escolhe;
isso depende de muitos fatores, como quando decidimos que carro
comprar, qual a cor etc. Foque sua atenção nos aplicativos de cada
um. Certamente, muitos serão iguais: correio, alarme, câmera,
Twitter, WhatsApp... Mas cada celular terá uma coleção de
aplicativos única, que é só sua. Essa coleção individual de
aplicativos é uma espécie de impressão digital do dono do celular.
Mesmo se considerarmos que,
estatisticamente, é possível imaginar dois celulares com o mesmo
grupo de aplicativos, imagino que a probabilidade de isso ocorrer
seja bem baixa, mesmo entre pessoas próximas ou da mesma família. É
por isso que, como escrevi acima, o celular é uma extensão digital
da sua pessoa. Através dos aplicativos, o instrumento permite que
você seja mais você, amplificando o seu senso de quem você é, o
seu alcance no mundo.
Ele estende sua presença muito além do
seu corpo, permitindo que você esteja, virtualmente, em qualquer
lugar do mundo, participando de conversas com pessoas em outras
cidades, países, ou pertencendo a culturas muito diferentes da sua.
O celular dissolve a essência de quem você é num código digital
transportável através do mundo. Juntando a isso o acesso à
informação, a verdade é que nunca estivemos mais próximos da
onipresença e da onisciência.
O celular, ao menos metaforicamente, nos
aproxima de uma existência divina: sem um corpo e cientes de tudo o
que ocorre no mundo. O que explica por que os celulares são tão
sedutores. Se não temos um, ou porque esquecemos o nosso em casa ou
porque quebrou, nos sentimos confinados a uma espécie de solitária
digital, separados de parte de quem somos e do resto do mundo. São
poucas as pessoas que, hoje, optam por não ter um. O “homo
analogicus” é uma espécie em extinção acelerada! Bem-vindos à
Era da Transcendência Digital. Esse processo é irreversível. Não
temos como voltar atrás. Podemos tentar monitorar o uso, e até
desligar o aparelho de vez em quando.
Mas difícil acreditar que a maioria das
pessoas seja capaz de pôr o seu na gaveta, ou de recusar usá-lo por
períodos longos (dias). A menos que seja uma espécie de desafio
pessoal, ou uma viagem de auto(re)descoberta, como as pessoas que
passam uma semana num retiro budista em meditação intensiva. Com os
celulares, expandimos nossa presença no mundo, ampliando nossos
horizontes sociais e culturais.
Quando adicionamos as várias mídias
sociais, podemos expandir nossas tribos, estabelecendo contato com
pessoas que dividem nossos valores, mesmo se vivendo em algum outro
canto do mundo. Mais dramaticamente, os celulares permitem que nossas
vidas sejam transferidas para o éter digital, baixáveis em qualquer
lugar do mundo, por quem quer que seja. Eles permitem que sejamos
admirados, até mesmo endeusados, por outras pessoas.
Ou, claro, odiados e invejados. A
transcendência digital e o narcisismo estão intimamente ligados.
Acho que poucos estavam preparados para isso. O lado bom dessa
tecnologia, que nos permite estar mais próximos dos amigos e da
família, ou dividir momentos importantes ou informações
relevantes, é indiscutível. Mas existem problemas sérios também.
Por exemplo, como evitar o narcisismo digital?
Todas essas fotos, milhares delas,
divididas pelo Instagram e Facebook; todos esses detalhes das nossas
vidas, a maioria irrelevantes, disponíveis na nuvem, acessíveis a
todos. O tempo investido – nas fotos, na sua edição, na sua
isseminação, na contagem dos “likes” – é um ritual do Eu,
milhões de pessoas buscando uma audiência, clamando pela atenção
dos outros.
E o que parece estar acontecendo é o
efeito inverso, as pessoas se sentindo cada vez mais sozinhas, apesar
de toda essa comunicação. O celular se transforma numa barreira
entre você e o mundo. O tempo passa tão rápido que queremos nossas
vidas registradas na memória, mesmo se virtual.
Se só morremos quando as pessoas se
esquecem de nós, na nuvem digital podemos viver para sempre. Você
já visitou o website ou página de Facebook de alguém que morreu?
Os que não querem participar da nova era digital se sentem
pressionados, náufragos do passado, em um mundo que afundou. Quem
não participar fica para trás. E é esquecido. Como toda outra
tecnologia com profundo poder transformador, não há como escapar. E
não temos por quê.
Os celulares e a mídia social são uma
extensão digital de quem somos, amplificando o que temos de bom e de
ruim, reposicionando nossa existência numa dimensão virtual.
Espero, apenas, que essa festa do Eu não acabe por criar uma apatia
social: as pessoas, cada vez com menos tempo, ficando cansadas dos
detalhes dos outros, perdendo o interesse em se comunicar e trocar
experiências e informação. Mas acho pouco provável que isso
ocorra.
A aliança entre as forças de mercado,
que promovem sem trégua essa transcendência digital, com nosso
apetite pelo que é belo, estranho ou violento vai nos manter
flutuando na nuvem virtual por muito tempo, enquanto tentamos, como
sempre fizemos, entender quem somos e qual o sentido das nossas
vidas.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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