terça-feira, 19 de outubro de 2021

Torto Arado | 6

Caminhou um dia e uma noite, e antes de o sol nascer chegou a uma vila de casas assentadas em cima de um tabuleiro. Havia terra no horizonte de seus olhos, passava uma boiada e vaqueiros seguiam os animais em seus cavalos. Daquele dia, se recorda do vento e da nuvem de poeira que não se desfazia. Precisou caminhar através dela, enquanto um dos vaqueiros, solitário, desgarrado dos que seguiam à frente, o olhou com atenção. Andou devagar e segurou a cruz que carregava no pescoço. Pela posição do sol deveriam ser seis da manhã de um novo dia, e o começou com louvação.
Seus pés doíam, não havia repousado durante a noite. Teve medo de adentrar a mata que não conhecia. Caminhou com seus encantados. Mas os riscos rondavam. Quem sabe seus próprios guias lhe dessem o medo banhado na luz da noite para lhe deixar vigilante diante dos perigos? Quem sabe esse medo não o fizesse chegar com segurança ao seu destino? Eles iam à frente abrindo caminhos. Ele sentia que eles afastavam os perigos da estrada. Os perigos das cobras, dos caititus, das onças. Os perigos dos coronéis e seus bandos. Os perigos da cobiça por terra e diamante. Deus era o guia maior que olhava por ele e guiava os encantados.
Nagô Velho, que seguia atrás, foi se aproximando quando ele chegava ao fim da jornada. De bengala, encurvado, de cachimbo na mão e chapéu branco. Desde Caxangá, desde que foi curado do que havia sofrido com as perturbações da mente, sentiu o Velho se aproximar, sentiu seu toque e conhecimento o cobrirem como um manto. Mas eles não estavam sozinhos. Mineiro seguia à frente. Fidalgo, todo de branco. Mineiro chegou com o povo das Minas Gerais e por aqui ficou porque ele entendia de povo de garimpo. Não dispensava vinho branco. Não dispensava cigarro branco. Era dele que vinham os avisos de que alguém sofreria com a loucura.
Oxóssi era o caçador, o que lhe dizia por onde seguir em meio à mata. O que o livrava dos perigos, das serpentes peçonhentas, e também enfeitiçava as caças que o alimentariam na nova morada. O pedaço de carne-do-sertão que sua mãe havia dado era suficiente para se alimentar até a chegada. Mas nem por isso Oxóssi o deixou seguir só, e andou por céu e terra, no alvoroço dos pássaros, nas folhas e raízes que colhia para os remédios e que guardava em sua sacola de palha.
Mãe D’Água o guiava pela água doce, matava sua sede. Ela surgiu quando ele desceu o tabuleiro entre a plantação e a estrada de boiada, para entrar por uma vereda onde haviam dito que ficava a fazenda. Ela continuava surgindo entre as folhas verdes e os troncos das árvores, entre os espinhos e os galhos retorcidos. Ela corria, aparecia e sumia, e seus pés se desfaziam num rio negro e limpo que era o próprio caminho e promessa de vida no seu destino. O rio corria e era como se de sua distância lavasse os seus pés para abençoar a chegada. Ventania não deixava o horizonte e subia num redemoinho lançando terra nos seus olhos. Era como se corresse o mesmo caminho com a Mãe D’Água para lhe dizer que teria terra e água para plantar e colher, para si e os que viriam. Ventania foi na frente, antes de todos, e se ergueu no horizonte enquanto ele estava na vila, cegando vaqueiros e gado. Ventania o fez cobrir os olhos. Arrastou as folhas secas do chão e as ergueu no ar, lançadas sobre seu corpo como um açoite, para que permanecesse desperto em sua caminhada.
Nesse dia, lhe vieram as coisas que lhe contavam e que não recordava. Que dormiu semanas perto de uma onça que não dava por fé de seus movimentos na mata. Que comeu as frutas que caíram do pé e pequenas aves e peixes rasgados no dente, vivos e com o sangue escorrendo por sua boca. Veio a lembrança da roça, do trabalho para os donos das roças. A história da mãe, viúva, parindo no meio da plantação de cana. A resistência de não querer assumir as funções de curadora. Veio a lembrança da irmã Carmelita, chegando à mocidade, costurando camisa e trançando palha de buriti na mão. De seus irmãos ainda pequenos ajudando as duas na molhação do quintal.
Pensou em tudo, e pensou também que se tivesse terra em Água Negra, que se lhe dessem o direito de levantar casa e botar roça, se tivesse quintal de fartura e água para a molhação, que se tivesse rio perto e peixe para botar na mesa, ele iria buscar a mãe, iria buscar seus irmãos, arranjaria homem direito e trabalhador para se juntar com Carmelita. E se tivesse moça direita ele também a levaria para casa. Teria filhos. Se os encantados chegassem, faria brincadeira para eles. Faria reza e remédio de raiz para os necessitados.
Foi assim que ele caminhou um dia e uma noite na companhia dos encantados, carregando o que tinha de lembrança e de história. Carregando carne seca e mel selvagem. Assim, sujo da terra grudada ao seu suor e com o cansaço que o levou a um dos vaqueiros da fazenda.
É aqui que é Água Negra?”
Pois não. Veio a mando de quem?”
Vim a mando de ninguém, não. Vim porque preciso de trabalho. Vim porque sou moço e tenho força pra trabalhar. Tenho mão boa para plantação. Tenho reza e remédio para praga de bicho comichão.”
Então pode ficar. Tem gente que chega, tem gente que volta pra onde veio, precisamos de gente por aqui, sim. Vou te dar esse bilhete para que leve a um senhor preto de nome Damião. Ele mora adentrando aquela estrada ali. Qual sua graça?”
José Alcino da Silva, mas pode me chamar de Zeca Chapéu Grande.”
O homem pegou um lápis e um papel pardo amassado para anotar coisas que ele não pôde ler. Mas as palavras retiniam: “Procure Damião. Ele vai dizer o que fazer.” Dobrou o papel para não perder. Guardou como se documento fosse e rumou pela vereda para encontrá-lo.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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