Caminhou um dia e uma noite, e antes de o
sol nascer chegou a uma vila de casas assentadas em cima de um
tabuleiro. Havia terra no horizonte de seus olhos, passava uma boiada
e vaqueiros seguiam os animais em seus cavalos. Daquele dia, se
recorda do vento e da nuvem de poeira que não se desfazia. Precisou
caminhar através dela, enquanto um dos vaqueiros, solitário,
desgarrado dos que seguiam à frente, o olhou com atenção. Andou
devagar e segurou a cruz que carregava no pescoço. Pela posição do
sol deveriam ser seis da manhã de um novo dia, e o começou com
louvação.
Seus pés doíam, não havia repousado
durante a noite. Teve medo de adentrar a mata que não conhecia.
Caminhou com seus encantados. Mas os riscos rondavam. Quem sabe seus
próprios guias lhe dessem o medo banhado na luz da noite para lhe
deixar vigilante diante dos perigos? Quem sabe esse medo não o
fizesse chegar com segurança ao seu destino? Eles iam à frente
abrindo caminhos. Ele sentia que eles afastavam os perigos da
estrada. Os perigos das cobras, dos caititus, das onças. Os perigos
dos coronéis e seus bandos. Os perigos da cobiça por terra e
diamante. Deus era o guia maior que olhava por ele e guiava os
encantados.
Nagô Velho, que seguia atrás, foi se
aproximando quando ele chegava ao fim da jornada. De bengala,
encurvado, de cachimbo na mão e chapéu branco. Desde Caxangá,
desde que foi curado do que havia sofrido com as perturbações da
mente, sentiu o Velho se aproximar, sentiu seu toque e conhecimento o
cobrirem como um manto. Mas eles não estavam sozinhos. Mineiro
seguia à frente. Fidalgo, todo de branco. Mineiro chegou com o povo
das Minas Gerais e por aqui ficou porque ele entendia de povo de
garimpo. Não dispensava vinho branco. Não dispensava cigarro
branco. Era dele que vinham os avisos de que alguém sofreria com a
loucura.
Oxóssi era o caçador, o que lhe dizia
por onde seguir em meio à mata. O que o livrava dos perigos, das
serpentes peçonhentas, e também enfeitiçava as caças que o
alimentariam na nova morada. O pedaço de carne-do-sertão que sua
mãe havia dado era suficiente para se alimentar até a chegada. Mas
nem por isso Oxóssi o deixou seguir só, e andou por céu e terra,
no alvoroço dos pássaros, nas folhas e raízes que colhia para os
remédios e que guardava em sua sacola de palha.
Mãe D’Água o guiava pela água doce,
matava sua sede. Ela surgiu quando ele desceu o tabuleiro entre a
plantação e a estrada de boiada, para entrar por uma vereda onde
haviam dito que ficava a fazenda. Ela continuava surgindo entre as
folhas verdes e os troncos das árvores, entre os espinhos e os
galhos retorcidos. Ela corria, aparecia e sumia, e seus pés se
desfaziam num rio negro e limpo que era o próprio caminho e promessa
de vida no seu destino. O rio corria e era como se de sua distância
lavasse os seus pés para abençoar a chegada. Ventania não deixava
o horizonte e subia num redemoinho lançando terra nos seus olhos.
Era como se corresse o mesmo caminho com a Mãe D’Água para lhe
dizer que teria terra e água para plantar e colher, para si e os que
viriam. Ventania foi na frente, antes de todos, e se ergueu no
horizonte enquanto ele estava na vila, cegando vaqueiros e gado.
Ventania o fez cobrir os olhos. Arrastou as folhas secas do chão e
as ergueu no ar, lançadas sobre seu corpo como um açoite, para que
permanecesse desperto em sua caminhada.
Nesse dia, lhe vieram as coisas que lhe
contavam e que não recordava. Que dormiu semanas perto de uma onça
que não dava por fé de seus movimentos na mata. Que comeu as frutas
que caíram do pé e pequenas aves e peixes rasgados no dente, vivos
e com o sangue escorrendo por sua boca. Veio a lembrança da roça,
do trabalho para os donos das roças. A história da mãe, viúva,
parindo no meio da plantação de cana. A resistência de não querer
assumir as funções de curadora. Veio a lembrança da irmã
Carmelita, chegando à mocidade, costurando camisa e trançando palha
de buriti na mão. De seus irmãos ainda pequenos ajudando as duas na
molhação do quintal.
Pensou em tudo, e pensou também que se
tivesse terra em Água Negra, que se lhe dessem o direito de levantar
casa e botar roça, se tivesse quintal de fartura e água para a
molhação, que se tivesse rio perto e peixe para botar na mesa, ele
iria buscar a mãe, iria buscar seus irmãos, arranjaria homem
direito e trabalhador para se juntar com Carmelita. E se tivesse moça
direita ele também a levaria para casa. Teria filhos. Se os
encantados chegassem, faria brincadeira para eles. Faria reza e
remédio de raiz para os necessitados.
Foi assim que ele caminhou um dia e uma
noite na companhia dos encantados, carregando o que tinha de
lembrança e de história. Carregando carne seca e mel selvagem.
Assim, sujo da terra grudada ao seu suor e com o cansaço que o levou
a um dos vaqueiros da fazenda.
“É aqui que é Água Negra?”
“Pois não. Veio a mando de quem?”
“Vim a mando de ninguém, não. Vim
porque preciso de trabalho. Vim porque sou moço e tenho força pra
trabalhar. Tenho mão boa para plantação. Tenho reza e remédio
para praga de bicho comichão.”
“Então pode ficar. Tem gente que
chega, tem gente que volta pra onde veio, precisamos de gente por
aqui, sim. Vou te dar esse bilhete para que leve a um senhor preto de
nome Damião. Ele mora adentrando aquela estrada ali. Qual sua
graça?”
“José Alcino da Silva, mas pode me
chamar de Zeca Chapéu Grande.”
O homem pegou um lápis e um papel pardo
amassado para anotar coisas que ele não pôde ler. Mas as palavras
retiniam: “Procure Damião. Ele vai dizer o que fazer.” Dobrou o
papel para não perder. Guardou como se documento fosse e rumou pela
vereda para encontrá-lo.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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