Mas acho que o doutor Jorge amava mais a
educação que as árvores. Para haver árvores é preciso que haja o
amor às árvores. Se assim não fosse, como explicar que ele tenha
vendido o seu paraíso de árvores a um grupo de missionários
protestantes norte-americanos, para que nele fizessem uma escola para
meninos e meninas? Não vendeu por precisão. Vendeu por ideal.
Esses americanos foram para Lavras
fugindo da peste, a febre amarela que assolou Campinas a partir de
1889. A morte andava solta. Quem podia fugia. A cidade ficou deserta.
Aí fugiram também os missionários.
O padre, um alemão, ficou indignado ao
saber da chegada dos apóstatas. Galo que canta sozinho no galinheiro
se ressente quando outro galo chega e começa a cantar diferente.
Tratou de insuflar os católicos para um “auto-de-fé” sem
fogueira, só com pedras. Foi preciso que o capitão Evaristo o
impedisse. Frustrado o “auto-de-fé”, o padre alemão pôs-se a
espalhar boatos sobre os americanos protestantes. Uma empregada da
dona Carlota Kemper, havendo ouvido o padre, resolveu tirar a prova.
Pôs-se a observar os pés da patroa. Dona Carlota notou e ficou
intrigada. “Por que a senhora olha tanto para os meus pés?”,
perguntou. A empregada, meio constrangida, respondeu: “Estou vendo
se o padre falou a verdade. Ele disse que os protestantes têm pés
de bode...” .
Numa coisa o padre alemão estava certo:
os protestantes eram gente diferente. Tolerantes, delicados,
generosos e justos na sua relação com as pessoas, eram implacáveis
com eles mesmos, quando o que estava em jogo era a sua relação com
Deus. Com Deus não se brinca. Com Deus não havia jeito de “dar um
jeito”. Deus cuidava pessoalmente dos seus negócios, não havia
delegado seus poderes a ninguém, fosse igreja ou sacerdote, não
precisava de santos que o ajudassem, não admitia intermediários e
lobistas. Seus olhos estavam bem abertos e tinha sua contabilidade de
pecados sempre em ordem. Deus, com seu olho aberto, morava no
superego dos protestantes. O resultado era que a sua consciência
doía muito. Todo protestante verdadeiro, dos bons, é perseguido
pelo sentimento de culpa. Jamais mentiam. Deus estava vendo. Palavra
de protestante valia.
Os católicos, ao contrário, não tinham
superego nem consciência que lhes tirasse o sono. Viviam numa farra.
Deus estava no céu, muito longe, ouvindo os coros angelicais. Quem
cuidava da terra eram os santos, que compreendiam as fraquezas dos
homens e eram complacentes. Não só permitiam tudo como também
ajudavam, desde que seus protegidos não se esquecessem de pagar suas
promessas. Pinga, malandragem, jogo, cigarro de palha, visitas às
casas das putas, um tirico no barrigão de algum desafeto do partido
oposto... Tudo se permitia ao fiel protegido pelo santo que ia à
missa aos domingos, confessava e tomava os sacramentos.
“No sertão até velório é festa”,
proclamou o Riobaldo. Velório católico era festa, desculpa pra
beber o morto, prova de amizade, passar a noite inteira em conversa
fiada, prova de estima, comer pastéis e bolinhos que as mulheres
fritavam no fogão aceso, prova de tristeza. Quem tem defunto tem de
pagar a festa...
Velório protestante não era festa: nem
pinga, nem conversa fiada, nem bolinhos e pastéis. Chegada a hora de
dormir despachavam todo mundo de barriga vazia, fechavam a casa e
deixavam o defunto sozinho na sala. Será que eles não sabiam que
era perigoso deixar o defunto sozinho de noite? Pois o Diabo, vendo o
morto sem vivos que o velassem, podia roubar o seu corpo e levá-lo
para o inferno.
Pra resolver qualquer problema os
protestantes iam à Bíblia. A Bíblia era a Palavra de Deus,
inspirada de capa a capa, caminho da salvação, norma de vida. O que
a Bíblia manda fazer tem de ser feito. O que a Bíblia manda não
fazer não pode ser feito. Os católicos achavam que Bíblia era
coisa do Diabo. Era mais seguro acreditar no padre.
O doutor Gammon, homem bonito que
provocava suspiros, era o reitor da escola. Aos domingos ia a
Ribeirão Vermelho, uma cidadezinha às margens do rio Grande
distante oito quilômetros de Lavras. Ia lá para pregar a Palavra de
Deus. Fazia a pequena viagem num tílburi. Domingo, de manhã bem
cedo, um empregado ia ao pasto, pegava o cavalo e o atrelava ao
tílburi e lá ia o doutor Gammon pela estradinha de terra. Dona
Carlota era rigorosa observadora do domingo. O seu zelo era tal que
se alguém lhe entregasse uma carta no dia de domingo ela a abriria
só na segunda-feira. Percebeu que o doutor Gammon estava incorrendo
em grave pecado. Chamou-o e repreendeu-o. Ele estava transgredindo o
quarto mandamento, que manda santificar o sétimo dia: “Não
farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o
teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das
tuas portas para dentro” (Êxodo 20.10). Não sei se por temor
à lei de Deus ou temor à dona Carlota, o fato é que daquele dia em
diante, aos domingos, o empregado descansava, o cavalo descansava e o
doutor Gammon se cansava. Ia a pé para Ribeirão Vermelho…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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