[baseado em história real]
Lucila tinha cabelos encaracolados. Era
sorridente e mais baixa do que o normal. Desde que a conheci, no
primário em São Paulo, fiquei apaixonado. Pensava nela quando subia
na jabuticabeira de casa, para observar o suicídio das frutas
maduras que se atiravam aleatoriamente dos galhos, enquanto minhas
irmãs corriam pelo quintal.
Havia um canto debaixo da escada da
garagem. Era o meu canto. Por que adoramos tocas?
Meu pai decidiu se mudar para o Rio de
Janeiro. Quando me comunicaram a notícia, sofri antecipadamente de
saudades. Lucila... Como seria a minha vida sem ela? Que desgraça! A
primeira coisa em que pensei foi fugir de casa, para marcar posição
e o meu protesto.
Fui corrompido pela oferta de uma enorme
festa só minha. Toda a escola seria convidada. Lucila então
conheceria minha casa, minha árvore, meu canto. Correria pelo
quintal. Brincaríamos.
Apareceu uma multidão. A casa parecia
uma quermesse. Teve palhaço e mágico. Eu nem sabia que tinha tantos
amigos. A maioria eu não conhecia. Era difícil se locomover entre
tanta gente. Não encontrava a minha amada. Me lembro que, num certo
momento, me escondi na garagem, sufocado, estressado.
E ela apareceu para se despedir, com
aquele cabelo dourado cacheado, como molas. Lucila era a fim de mim
também, eu tinha certeza. Ficamos juntos conversando. Toda a escola
respeitou nossa privacidade. Nos demos as mãos e fomos ver outro
número do palhaço. Passamos o resto do dia grudados. Foi uma única
vez em que demos vazão para o nosso amor.
Se eu não tivesse que me mudar, eu
sabia, seríamos o casal mais feliz da cidade, eu, com 6 anos, e ela,
com 5. Como a vida atrapalha histórias de amor... Que lição meu
pai me dava, ao me amputar a paixão.
Vivi no Rio com saudades. Pensava,
sonhava, imaginava. Lucila. Lá, reencontrei meu melhor amigo,
Eduardo, outro paulista exilado. Estudamos na mesma classe. Edu já
estava enturmado, o que me ajudou no convívio. Ele também tinha
irmãs. Tinha diálogo com as cariocas.
Ficamos amigos de Roberta e Isabel, duas
morenas amadas por toda a escola.
Nas aulas, dividíamos as mesas com elas.
Eu com Roberta, ele com Isabel, conhecida como Isaboa. Ou vice-versa.
Passávamos os recreios com elas, para a inveja coletiva. Nas aulas
de música, tocávamos triângulo, elas, coco. Ou vice-versa.
Ficávamos juntos, fora do ritmo, tocando uma outra música, só
nossa.
Havia um obstáculo para o
desenvolvimento de paixões. As duas eram maiores do que eu. Se não
me engano, Roberta era a mais alta de todas. Para um moleque, é um
entrave que afugenta o amor. Especialmente aos 8 anos.
Apesar de toda a escola achar que
namorávamos as duas, era pura amizade. E eu não me esquecia de
Lucila e seus cachos malucos. Um dia, eu iria reencontrá-la.
Até passar para o ginasial, mudar de
prédio, recepcionar novas turmas e conhecer Carla, loirinha
enigmática, linda como a vista do recreio, o Pão de Açúcar. Do
meu tamanho. Nutri por ela uma paixão secreta. Quando ela passava,
minhas pernas tremiam. A timidez era na mesma proporção que a minha
admiração. Nunca ouviu a minha voz. Puro amor platônico.
A maioria de nós compreendia o que
significava o amor platônico e já vivera o seu, idealizara uma
garota e sofrera por causa de uma timidez revoltante. Apesar de a
maioria não ter ideia de quem foi Platão, nem de que seu amor foi
definido na Renascença, baseado nos diálogos do filósofo, que
apontavam que o amor mistura fantasia e realidade pelo ser perfeito,
e a essência desse amor é a idealização. O amor platônico é
comparado a um amor a distância, sem envolvimento e contato, que os
inseguros alimentam especialmente na adolescência.
Carla despertava o amor platônico em
todo o Colégio Andrews. Para nos confundir, ela era filha do nosso
maior ídolo, Carlos Niemeyer, do Canal 100, telejornal que
revolucionou a linguagem, era exibido antes dos filmes, e terminava
com imagens em câmera lenta, com câmeras na beira dos gramados, de
lances do último clássico de futebol, sob uma trilha sonora
marcante. Queríamos Carla e conviver com a sua família, sermos
convidados para ver os jogos de perto e termos em mãos aquele
acervo.
A ditadura apertou o cerco. Edu se exilou
em Londres. Me mandava cartas perguntando de futebol e Carla. Eu
mentia. Dizia que estávamos namorando. Que ficávamos na casa dela
nos pegando, apesar dos 11 anos de idade.
Meu pai foi preso e morto naquele ano. Me
fechei. Meu olhar ficou triste, como o de um cachorro molhado. Muitos
passaram a me evitar. Afinal, eu era filho de um terrorista que
atrapalhava o desenvolvimento do país, aprendiam com alguns pais,
professores, liam na imprensa, viam nos telejornais.
Ficava muito tempo sozinho no banco da
escola. Aos poucos amigos, eu tentava explicar que meu pai não era
bandido. A maioria não tinha ideia do que se passava nos porões. A
censura e o milagre brasileiro cegavam.
No meio do ano, minha família foi
obrigada a sair do Rio. Na festa de São João, comuniquei a mudança.
Muitos vieram se despedir. Eu estava numa barraquinha comprando
doces, quando Carla se aproximou, para se despedir. Minhas pernas
tremeram, como sempre. Fiquei sem ar. Ela disse o meu nome,
Marrrcelo, com aquele sotaque carioca delicioso. Me beijou. “Você
vai embora, Marrrcelo?” Eu não disse nada. Mais um amor era
deixado pra trás. E por instantes perdoei o meu pai por não ter se
exilado, como a maioria, para salvar a pele.
Reencontrei Lucila no colégio, na volta
para São Paulo. Não tinha mais os cachos. Continuava encantada.
Relembramos o passado. Para ela, eu também representava o primeiro
namorado.
Fui gentil. Mas havia uma baixinha do meu
ano, misteriosa, secreta, apaixonante, de poucas palavras e muitos
fãs. Que nem sabia da minha existência e nunca reparou nos meus
olhos tristes.
Reencontrei Carla no ano passado. Aliás,
coincidentemente, na Livraria Argumento, do meu amigo Eduardo. Ela se
apresentou. Sabia das cartas, em que eu mentia sobre o nosso amor.
Não sabia que era tão idolatrada assim. Rimos das maluquices
platônicas. São os cometas da memória.
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para se ler na escola
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