Me ajoelhei e fechei os olhos de Tobias.
Levantei sem sobressalto, caminhei para o canto da estrada onde o
cavalo comia com a cabeça baixa e abanando as orelhas para espantar
as varejeiras. Alisei sua barriga, como se fosse o ser mais
importante do mundo. Dei dois tapinhas no lombo, indicando que queria
partir. Tomei as rédeas em minhas mãos e segui caminhando com os
moradores, que carregaram o corpo até nossa casa.
Certa vez, me fizeram chegar uma notícia,
por Maria Cabocla, de que Tobias havia se indisposto com uma curadora
de nome Valmira, que vivia na cidade. Muitos filhos da casa o haviam
colocado para fora depois de uma bebedeira. O motivo era a encantada
de dona Miúda, a tal Santa Rita Pescadeira, a mesma que de vez em
quando surgia no jarê de meu pai. Depois de chegar à casa de
Valmira, a encantada passou a ouvir ofensas de Tobias, duvidando de
sua existência, incitando que mostrasse seus poderes, dizendo que a
própria Valmira era uma farsa, que nada daquilo existia. Por várias
vezes a curadora havia intervisto para fazer com que cessasse de
dizer as asneiras. Sem recuar ou se desculpar, Tobias recebeu uma
única sentença, proferida pela própria encantada montada no corpo
de dona Miúda. Palavras que ninguém escutou, nem mesmo Valmira,
somente ele. “Mas ele continuou a desfazer da encantada”, disse
Maria Cabocla, “e agora não se espante se alguma desgraça se
abater sobre sua casa”.
“Como tua avó, Belonísia. Como tua
avó”, ouvi minha mãe dizer segurando meus ombros, enquanto
amarrava um lenço negro em minha cabeça. Ela quis lembrar as
viuvezes de minha avó Donana, que havia enterrado seus maridos. Meus
olhos estavam secos, tamanha era a duração da estiagem. Estiou
alguma coisa em mim desde o dia em que permiti aquela união, desde
quando entrei na casa repleta de entulhos e deixei que Tobias
levantasse minha roupa. Desde quando me permiti ouvir insultos sem
devolver da maneira que gostaria. Me postei de pé um pouco afastada
do caixão, mas próxima à porta, recebendo os vizinhos que chegavam
em grande número. Via entrar e sair gente de casa, estava dispersa,
mas não aflita, e Domingas e minha mãe tentavam providenciar o
necessário. Por vezes, afastava as pessoas de mim sem mudar a
expressão de meu rosto. Esperavam que me comportasse como uma viúva
inconsolável. Cuidavam para que meu luto estivesse evidente, em
respeito ao homem que vivia comigo. Tive que me conter algumas vezes
para não deixar escapar um sorriso traiçoeiro, um gesto que fosse
considerado desrespeitoso pelos presentes, por meu pai e minha mãe,
principalmente. Mas também que não esperassem que me fechasse em
nojo, repetia a mim, ao perceber os gestos exagerados de contrição
e luto por parte dos vizinhos e compadres.
Durante todo o velório, só olhei para o
rosto de Tobias uma única vez, mesmo assim guardando certa distância
de seu corpo. Tinha um ferimento pequeno na testa, e mesmo depois de
limpo, continuava a minar um líquido transparente como sangue
desbotado. Mas não estendi minha mão sequer para ajeitar o filó
que adornava a urna. Queria encerrar de vez aquele momento de minha
vida. Tentei apressar o fim do funeral apertando minha irmã para que
conduzisse a saída do cortejo. Foram prestadas todas as homenagens
que poderiam ser feitas, as comadres haviam rezado o rosário e
recomendado sua alma. Eu também rezaria por ele. Bastava. Não
precisavam esperar que de meus olhos saíssem lágrimas. Foi assim
que vi seu corpo deixar a casa que levantou, onde guardou tudo que
achava como se fosse um tesouro, para descer à terra, com a
serenidade que não havia naquela tapera, onde vivemos por pouco mais
de um ano.
Minha mãe quis que seguisse com ela para
sua casa, que fechasse tudo e voltasse a morar em sua companhia.
Também não quis. Queria estar só, experimentar a vida no silêncio
que havia encontrado longe de todos. Compreendi a preocupação de
Salu, afinal eu estava sozinha e ela me considerava exposta aos
perigos de uma mulher sem homem a lhe acompanhar. Não acreditariam
se contasse que talvez fosse eu quem protegesse Tobias, que nos
últimos tempos se largava bêbado na cama, inútil nessas horas para
qualquer vigilância. Só por isso permiti que Domingas me fizesse
companhia nos primeiros dias. Mas minha irmã percebeu que eu estava
bem, tão entretida nas atividades do dia a dia desde que fui morar
às margens do rio Santo Antônio. Me perguntou se não tinha medo de
ficar só. Acenei a cabeça para dizer muitas vezes que não,
conseguiria um cachorro para me fazer companhia como o velho Fusco,
que já havia morrido. De Tobias ficou uma espingarda guardada
debaixo da cama. E eu não estava disposta a deixar aquele pedaço de
chão para que outra pessoa usufruísse do cuidado que tive para
fazer daquele quintal um canto vistoso de terra. Havia me afeiçoado
às plantas, a cada coisa que crescia com a força do meu trabalho e
do de Tobias. Mas a casa está em mau estado, me disse Domingas. Sim,
em mau estado, mas já vi casas serem levantadas muitas vezes. Sei
bem o que se necessita para fazer desse ranchinho uma boa morada.
Daria um destino aos entulhos, Tobias adiava o momento de forma
desinteressada, mas agora carregaria tudo e deixaria no lixão. Logo,
aquela casa sombreada pelo grande jatobá seria um lugar muito
diferente de quando cheguei. Não pretendia me juntar de novo a
alguém, não queria casar nunca mais. Conservaria a casa e o pedaço
de terra que a cercava porque talvez fosse tudo que pudesse ter na
vida.
Só assim poderia experimentar o
sofrimento como o sentimento que unia a todos que viviam em Água
Negra e em muitas outras fazendas de que tínhamos notícia. Foi
sozinha que experimentei as aflições que vi meus pais passarem ao
longo de suas vidas. Não tinha descendentes para alimentar, mas fiz
questão de trabalhar com mais força e vigor que muitos homens que
ali viviam. O sofrer vinha das coisas que nem sempre davam certo, me
fazia sentir viva e unida, de alguma forma, a todos os trabalhadores
que padeciam dos mesmos desfavorecimentos. Nunca pude reclamar da
sorte, que também se postou com seu encanto ao meu lado. Bati saco
de milho, fiz muitos sacos de farinha, labutei dia a dia na roça que
crescia verde. Se o sol fosse inclemente e matasse a plantação,
deixando um rastro de cultivo mirrado e queimado, ou se os rios
enchessem e a água comesse o que não deu tempo de colher, dava meu
dia de trabalho onde precisassem dele. Quando não havia trabalho me
agarrava à colheita do buriti e do dendê, e seguia com Maria
Cabocla e outras mulheres para a feira da cidade. Vez ou outra um
motorista nos oferecia carona para andar na boleia de seu veículo,
ao nos ver besuntadas da massa do fruto caminhando pela estrada.
Um dia, ao subir no buritizeiro, furei
meu pé em um espinho. Fui abatida como uma caça no chão dos
marimbus. Só pude seguir adiante porque Maria Cabocla mandou dois de
seus meninos chamarem Zezé e Domingas para me acudirem. Tentaram a
todo custo me fazer voltar para casa. Até Zeca Chapéu Grande veio,
com sua autoridade de pai e curador, tentar me demover da ideia de
viver desacompanhada. Apelei para sua fé, que de certa forma
refletia a minha também, para lembrar, apontando para o céu e para
o meu pequeno altar de santos na sala – um santinho de S. Sebastião
crivado de flechas, um porta-retrato faltando uma das tiras laterais,
com uma imagem escurecida de S. Cosme e S. Damião, uma pequena
imagem de Nossa Senhora Aparecida, outra de Santa Bárbara, uma
imagem nova de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que me foi dada por
comadre Nini e uma garrafa de Coca-Cola com ramalhetes de
sempre-vivas que colhia na fazenda. Era pra dizer que nunca estávamos
sozinhos, porque Deus e os encantados sempre estariam ao nosso lado.
Nunca mais meu pé voltou a ser como era,
o espinho, como um punhal, atravessou de um lado a outro deixando
como sequela uma dor permanente, seguida de inchaço e vermelhidão.
Segui algumas vezes para a cidade, com Domingas, minha mãe e dona
Tonha, os médicos examinavam, passavam remédio, mas não curava.
Meu pai fez remédio de raiz, pediu paciência, a dor foi aliviando a
ponto de quase desaparecer. Mas bastavam os dias exaustivos de
trabalho para que o inchaço retornasse e a dor se agravasse. Porém,
nada disso retirou a vontade de transformar meu entorno com meu
trabalho, mesmo sabendo que, por não ter filhos, Sutério levaria
uma generosa parte de minha produção. Por isso saía muitas vezes
antes de o dia raiar, levava parte do que colhia para a casa de meus
pais para que fosse dividido entre todos. Esperava Maria Cabocla vir
com os meninos para saber como eu estava, e fazia questão que
levasse aipim, feijão de corda, abóbora e batata para sua casa.
Quando me senti melhor do ferimento
comecei a construir uma nova casa. Não há como consertar as casas
de barro, então o jeito é construir uma nova, em outra parte do
terreiro. Era assim com todos que moravam na fazenda: enquanto
fazíamos a nova, deixávamos a antiga tombar ali mesmo. Zezé ajudou
a carregar o barro do rio, a cortar estacas para a forquilha e
parede. Via como um encanto uma casa nascer da própria terra, do
mesmo barro em que, se lançássemos sementes, veríamos brotar o
alimento. Quantas vezes havia visto aquele ritual de construir e
desmanchar casas e ainda me maravilhava ao ver se levantar as paredes
que seriam nosso abrigo.
No mesmo dia em que terminei de trazer as
coisas da casa antiga para a nova, Maria Cabocla adentrou a casa,
acuada, com um corte na boca. Não precisava falar para que eu
soubesse. Aparecido estava a cada dia pior. Disse que se voltasse e a
encontrasse em casa, que a mataria na frente dos filhos. Senti
revolta, tive más recordações de Tobias, mesmo achando que não
deveria lembrá-lo dessa forma, para que tivesse seu derradeiro
descanso. Arrastei Maria para sua casa de novo, havia chegado com
três crianças, mas as outras continuavam lá, sozinhas. Não achava
justo deixá-las aos cuidados de um bêbado. Estava farta de vê-la
chegar desamparada. Ela parecia não querer ir, tinha o medo em seus
olhos, mas cedeu. Fui buscar algumas coisas no armário de roupa para
colocar no pequeno bocapio. Pensei em pedir a ajuda de algum homem,
mas antes que externasse isso, Maria me disse que se um homem fosse à
sua casa seria pior, poderia até haver morte, Aparecido tinha ciúme
doentio dela. Desisti e decidi ir sozinha, em sua companhia.
A porta não estava bem aprumada e
demandou força de minha parte para fechá-la antes de seguir. Deixei
a pequena sacola cair no chão e Maria Cabocla se abaixou para juntar
tudo de novo. Se deteve no cabo de marfim da faca de prata que,
passado tanto tempo, ainda era puro brilho, encantada com o objeto.
Seu olhar parecia o olhar de Bibiana no dia em que a colocamos na
boca. Passou de uma mão a outra antes de devolver a sacola e não
ousou perguntar por que a estava levando comigo.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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