quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Questione a cultura que você consome

Toda vez que vou dar uma palestra, pode ser sobre racismo, diversidade ou o pensamento de Simone de Beauvoir, alguém me pergunta sobre apropriação cultural—mais precisamente, sobre o uso de turbantes por pessoas não negras. Alguns anos atrás, houve uma polêmica nas redes sociais, em que uma moça branca afirmava que um grupo de mulheres negras teria arrancado o turbante dela à força. Há quem não acredite que a situação tenha se dado assim, porém, como a história viralizou nas redes sociais, é comum que as pessoas tenham dúvidas sobre esse tema.
Em primeiro lugar, é importante dizer que o debate sobre apropriação cultural não deve ser reduzido a poder ou não usar turbante. A discussão pertinente é aquela que denuncia o quanto culturas negras e indígenas foram expropriadas e apropriadas historicamente. Nos processos de colonização, a visão de cultura do colonizador foi imposta, enquanto bens culturais eram saqueados. Um exemplo disso são as coleções dos principais museus da Europa, onde hoje se encontram objetos de diferentes países africanos, asiáticos e americanos—peças que, com certeza, devem significar muito para essas culturas. A questão crucial desse debate é que o interesse pela cultura de certos povos não caminha lado a lado com o desejo de restituir a humanidade de grupos oprimidos. Assim, muitas pessoas que consomem cultura negra não se preocupam com as mazelas que a população negra vive no país. Ou ainda, não se importam com o embranquecimento dessas culturas. Como bem explica o antropólogo Rodney William:

apropriação cultural não diz respeito ao que pode ou não ser usado. Não é sobre branco não poder usar turbante, cantar samba ou jogar capoeira. A questão da apropriação cultural é sobre uma estrutura de poder. Há um poder instituído na sociedade desde a colonização que delega aos dominantes o direito de definir quem é inferior nessa estrutura e como se pode dispor de suas produções culturais e até de seus corpos.

Outro ponto importante é perceber em que medida um elemento cultural foi esvaziado de sentido. Portanto, é fundamental debater o papel do capitalismo na perpetuação do racismo. Por exemplo, uma marca de luxo pode fazer uma coleção de moda inspirada em elementos da cultura negra, porém só contratar modelos brancas para o desfile—essas peças chegam ao consumidor já destituídas de sentido. O debate, dessa forma, precisa ser estrutural, não individual.

É importante que se tenha uma preocupação real em não desrespeitar os símbolos de outras culturas. Para isso, deve-se nutrir empatia pelos diversos grupos existentes na sociedade, um processo intelectual que é construído ao longo do tempo e exige comprometimento: quando eu conheço uma cultura, eu a respeito. Então é essencial estudar, escutar e se informar.
O debate sobre racismo se mostra urgente quando falamos de mídia e de acesso a recursos para produções audiovisuais. No documentário A negação do Brasil, o diretor Joel Zito Araújo analisa a influência das telenovelas no imaginário coletivo nacional, enquanto faz uma denúncia contra o racismo televisivo e o papel estereotipado destinado a atores negros e atrizes negras. Remontando ao exemplo de black face — isto é, quando personagens negros são representados por atores brancos com o rosto pintado — ocorrido na novela A cabana do Pai Tomás, de 1969, na qual o ator Sérgio Cardoso se pintou de preto para interpretar o papel do protagonista, o escravizado Tomás, o cineasta apresenta um panorama do racismo na teledramaturgia brasileira. Na novela A escrava Isaura, por exemplo, uma adaptação de Gilberto Braga do romance homônimo de Bernardo Guimarães (1875), apesar de no livro a personagem-título ser uma mulher negra, a atriz que a interpretou foi Lucélia Santos, uma mulher branca. O diretor apresenta muitos casos de racismo e critica o lugar subalterno a que personagens negros são relegados: para além da reivindicação justa por representatividade, também se deve questionar o modo como estamos sendo retratados. Muitas vezes atores negros são contratados para atuarem como “bandido” ou “bêbado”, no caso dos homens, ou como empregada doméstica ou a “gostosa”, no caso das mulheres.
O professor de direito antidiscriminatório Adilson Moreira identificou os elementos do que ele chama de racismo recreativo: um “mecanismo que encobre a hostilidade racial por meio do humor”. No livro que escreveu sobre o tema, Moreira nomeia alguns estereótipos: Tião Macalé, o “feio”; Mussum, o “bêbado”; Vera Verão, a “bicha preta”.
O primeiro exemplo, Tião Macalé, foi um personagem do conhecido programa humorístico Os Trapalhões, interpretado pelo ator negro Augusto Temístocles da Silva Costa. Macalé era retratado sem a maioria dos dentes, pois a feiura do personagem seria responsável pelo efeito cômico, segundo Moreira.
Mais recentemente, Adelaide, personagem do programa Zorra Total interpretado pelo ator Rodrigo Sant’Anna, seguia o mesmo modelo cômico de Macalé. O ator se caracterizava de mulher, pintava a pele de preto e colocava uma prótese que dava a impressão de que Adelaide não possuía alguns dentes da frente. Caracterizado como “a negra pobre desdentada”, o bordão cômico da personagem era “a cara da riqueza”.
Já Mussum, um dos personagens mais populares da TV nas décadas de 1980 e 1990, interpretado pelo ator Antônio Carlos Bernardes Gomes, era o estereótipo do bêbado. Um dos elementos cômicos do programa Os Trapalhões era direcionar piadas racistas ao personagem. Segundo Moreira, o efeito cômico de Mussum era um exemplo do tipo de humor que visa provar uma suposta superioridade do homem branco em relação ao homem negro, uma vez que os personagens brancos eram representados de forma sóbria. Por fim, Vera Verão, personagem interpretado pelo ator Jorge Luís Sousa Lima, era o estereótipo do homossexual negro promíscuo, que tentava seduzir homens de maneira direta, porém sempre sendo rejeitado.
Já Sueli Carneiro, ao escrever sobre Terra Nostra, novela dos anos 1999-2000 de muito sucesso, responde aos elogios de que a novela estaria contribuindo para a “autoestima da comunidade italiana”. No artigo “Terra Nostra só para os italianos”, Sueli relembra alguns dos diálogos:

Assistimos ao menino Tiziu reclamar de sua sorte ingrata com a seguinte frase:

Deus não quis me embranquecer”. Imagine o impacto dessas frases na autoestima da comunidade negra, especialmente sobre as crianças negras.

Em outra passagem, Sueli relembra:

O barão do café pondera com seu contratador sobre a impossibilidade de abrigar os italianos nas senzalas desertas pela abolição. Diz ele: “São brancos. Trazem no coração o espírito da liberdade. Não vão aceitar essa história de senzala”.

Então, Sueli conclui:

Considerando que os personagens negros não têm relevância na trama, a sua presença e a imagem negativa que veiculam prestam-se unicamente a ratificar a suposta superioridade do branco.

As frases destacadas por Sueli Carneiro refletem a história da população negra no Brasil, que, após séculos de escravização, viram imigrantes europeus receberem incentivos do Estado brasileiro, inclusive com terras, enquanto a negritude formalmente liberta pela Lei Áurea era deixada à margem. Os incentivos para imigrantes fizeram parte de uma política oficial de branqueamento da população do país, com base na crença do racismo biológico de que negros representariam o atraso. Essa perspectiva marcou a história brasileira, valorizando culturas europeias em detrimento da cultura negra, segregando a população negra de diversas formas, inclusive por leis e pela esterilização forçada de mulheres negras, prática que o Estado brasileiro manteve até um passado recente, como comprovado pela CPI da Esterilização de 1992, proposta pela deputada federal Benedita da Silva e resultado da pressão feita por feministas negras nos anos 1980.
Esses são alguns exemplos de estereótipos que confinam atores negros e atrizes negras, resultando em poucas opções de personagens que não sejam marcados por essas violências simbólicas. Enquanto atores brancos e atrizes brancas recebem amplas oportunidades de representação na indústria audiovisual, negros e negras ainda lutam para que suas atuações não firam a humanidade de pessoas negras. Do mesmo modo, ainda são poucos os cineastas, roteiristas e produtores negros: as opções ficam limitadas como resultado do racismo estrutural.
Nas redações de jornais não é diferente. Segundo o Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa), núcleo de pesquisas sediado na Uerj, nem 10% dos colunistas dos grandes jornais são negros. No meu caso, quando comecei a escrever na CartaCapital, comentando filmes, livros ou textos de outras pessoas, mais de uma vez alguém ligou furioso na redação, dizendo que eu não havia entendido o que quiseram dizer. Eu achava curioso, pois era como se a crítica de uma pessoa negra ao trabalho de uma pessoa branca rompesse com o pacto narcísico. O racismo conhece o potencial transformador da potente voz de grupos historicamente silenciados.
Quando assistir a um filme ou a uma novela, procure refletir sobre a presença ou a ausência de atores e atrizes negros. Quantas pessoas negras estão atuando? Que personagens interpretam? O mesmo vale para qualquer produto cultural: quando for a uma exposição de arte, a uma festa literária, a um debate sobre poesia, quando ler um livro ou folhear uma revista. E, para você que pode contratar profissionais da cultura ou investir em projetos culturais, reflita quem você escolhe para a equipe e quais temas estão sendo tratados. Você está fazendo o que pode para contribuir para a luta antirracista?

Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista

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