sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Peça nova

Estou escrevendo uma peça que suponho venha a alcançar a maior glória e bilheteria. Será facílima de montar. Dispensa cenários e até mesmo atores, pois o que há a comunicar poderá ser transmitido em fita magnética, se houver fita magnética. Se não houver, aproveitam-se os ruídos da rua, que sendo variados, tornarão o espetáculo diferente a cada apresentação. Em último caso, não havendo ruídos externos a captar, ficará por conta da inventiva de cada espectador a criação de sons, inteligíveis ou não (de preferência inin), que compõem (ou não compõem, tanto faz) a estrutura original de minha peça.
Como? Ah, sim, é o Yan Michalski perguntando o que é então que estou escrevendo, se não haverá texto, mas simplesmente sons, ou nem isto. Respondi-lhe que escrever o não escrito, escrever inescrevendo (sempre in) é básico em minha concepção cênica. Todo o meu esforço intelectual se concentra em compor uma peça que, não tendo qualquer palavra dicionarizada ou bolada na hora pelo autor, esteja isenta de mácula perante a suspicácia da Censura. Vencerá, pois, galhardamente, a etapa preliminar de todo espetáculo. A preliminar e as outras. Tem-se visto a Censura desaprovar o que aprovou, mandando retirar do cartaz aquilo que antes autorizara a ser mostrado. Dá o dito por não dito. Darei então o não dito por dito.
Ia começando a fazer o segundo ato, quando alguém de bom juízo me adverte que o melhor é não usar nem atores nem fita magnética nem rumores da rua. Nunca se sabe o que pode sair da mistura de sons urbanos — buzinas, gritos, freadas, objurgatórias (nome estilizado de palavrão), ronco de motor, vento zunindo, quedas do vigésimo andar, vendedores de porta de loja, gargalhadas, choro etc. Este material sonoro pode revestir-se de feições estranhas, consideradas suspeitas por um censor que tenha ouvido delicado, e lá se vai o dinheiro do produtor de minha peça, lá se vai minha glória, além de outros aborrecimentos, fáceis de prever.
O cauto amigo me previne ainda quanto ao que ele considera o maior risco: deixar entregue à imaginação imprevisível do espectador os sons da peça. Não há dúvida — admite — de que se trata de experiência dramática das mais sedutoras, pela instituição da autoria múltipla, ao sabor das novas tendências da arte: o sujeito fruidor-criador do objeto. Cada assistente repartirá comigo as vaidades da criação, e isto estimulará infinitas realizações no gênero, que se poderia rotular de teatro-em-ser, teatro-branco, teatro-não, teatro-sim, à vontade. Mas adviriam duas consequências desagradáveis. Primeira, o espectador reclamaria sua cota de direito autoral. Segunda (fatal para a peça), o espetáculo ficaria em cena apenas meio minuto, tempo suficiente para o censor detectar no espírito do cavalheiro da terceira fila, poltrona oito, a inadmissível formulação de um som altamente reprovável do ponto de vista do código da Censura.
Tendo na devida conta as ponderações do meu amigo, permito-me considerá-las improcedentes. Como renunciar ao puzzle de sons que será a essência de minha peça? Recorrer a palavras seria contaminá-la. Usar o silêncio seria estabelecer o teatro puro, para o qual não estamos preparados, ou talvez incorrer na condenação total do censor.
Não vejo o menor inconveniente em que a plateia compartilhe da renda, acho até que esta será a maneira de levar público ao teatro. Quem não gostará de colaborar na invenção e participar dos lucros? Por outro lado, a duração de meio minuto para o espetáculo já é bom limite de tempo, se o compararmos à não duração das peças natimortas pela proibição censória. Meio minuto é meio triunfo. O próprio censor, quem sabe? será tentado a praticar o exercício excitante da multiautoria com dividendo.
Prossigo pois no trabalho, com amor e pertinácia, animado do propósito de achar uma saída para o teatro nacional em face da Censura. Eis a fórmula: a peça que, por onde quer que se lhe pegue, não se deixa pegar. Pela supressão da linguagem e das conotações impróprias que toda palavra traz consigo, senão intrinsecamente, pelo jeito com que é pronunciada, pelo olhar que a sublinha, pelo gesto ou suspeita de gesto etc. Sentido? Deixa pra lá.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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