Um sujeito mais cético talvez esteja se
perguntando por que diabos ele deveria se interessar pelos genes,
monumentos e obras de arte totalmente obscuros produzidos por povos
que deixaram de existir séculos atrás, aos quais não conseguimos
nem atribuir um nome com algum grau de certeza, na maior parte dos
casos. Como você já se deu ao trabalho de abrir este livro, presumo
que não seja um desses caras, mas aqui vão, de todo modo, alguns
argumentos para esfregar no nariz daquele tio chato que gosta de
alardear seu espírito prático.
Para começo de conversa, a não ser que
ele pertença a alguma família de origem europeia ou asiática cujos
membros fundadores puseram os pés neste continente há poucas
décadas e jamais se dignaram a gerar prole com alguém que já
estava aqui antes, as chances de que o tio cético carregue DNA
desses povos “perdidos” é elevada — em especial do lado
materno da família, mesmo que ele assinale a opção “branco”
nos questionários do IBGE sobre cor da pele/afiliação racial.
Essa, aliás, é uma das conclusões mais
sólidas das análises genômicas que se popularizaram desde o começo
deste século. Para entender melhor isso, anote aí a sigla, porque
vamos usá-la como pau para toda obra ao longo destas páginas:
mtDNA, ou DNA mitocondrial, a minúscula fitinha de material genético
que se aninha no interior das mitocôndrias, estruturas em forma de
nhoque (bem, ao menos do meu ponto de vista de ávido devorador de
nhoque) que são as usinas de energia das células de organismos
complexos como nós.
Em seres humanos, o mtDNA se limita a
apenas 16,5 mil pares de “letras” químicas, as unidades do
material genético conhecidas como A (adenina), T (timina), C
(citosina) e G (guanina). É muito pouco — mais ou menos a mesma
quantidade de letras e espaços presente numa única reportagem de
tamanho médio de uma revista mensal (eu sei porque vivo escrevendo
esse tipo de coisa, como você deve ter imaginado), enquanto a
“edição principal” do genoma humano tem três bilhões de
letras químicas. Apesar do tamanho modesto, porém, o mtDNA tem uma
propriedade incrivelmente útil para quem estuda a história
populacional da nossa espécie: ele só costuma ser transmitido pelo
lado materno. Não participa do “embaralhamento” de material
genético que acontece toda vez que óvulos e espermatozoides são
formados. Você, moça, e você também, meu bom rapaz: ambos só
carregam mtDNA da mamãe, e não do papai — e assim foi desde a
aurora dos tempos.
E daí? Daí que, não importa quantas
vezes, por quantas gerações, as descendentes da união entre uma
índia e um português no longínquo século XVI tenham se casado com
italianos, japoneses ou lituanos, elas sempre carregarão mtDNA
indígena — desde que haja uma transmissão ininterrupta de mãe
para filha, para neta e assim por diante. Digo “mtDNA indígena”
porque há uma tendência clara de diferenciação geográfica e, em
menor grau, étnica, entre os chamados haplogrupos — grosso modo,
nada mais que um jeito chique de dizer “subgrupos” — de mtDNA.
Os haplogrupos ameríndios, ou seja, de nativos das Américas, são
bem característicos deste continente, embora possuam uma ligação
clara com os de certas áreas da Sibéria, o que é um dos muitos
argumentos fortes em favor da origem (em última instância) asiática
dos indígenas modernos.
Embora, de maneira geral, a contribuição
dos ameríndios para o DNA “principal” dos brasileiros seja
pequena (inferior a 10%, em média) perto da europeia (predominante)
e africana (logo atrás), muitos dos que se consideram brancos por
aqui têm mtDNA indígena — sinal de uma matriarca esquecida no
passado remoto de inúmeras famílias brasileiras da gema, cujo único
vestígio concreto é a sopa química de letrinhas nas células de
seus descendentes. Para ser mais exato, entre 20% e 30% dos
brasileiros vivos hoje descendem de uma tataravó índia, como mostra
o mtDNA. Enxergar com mais clareza a ascensão e queda de povos e
culturas do Brasil pré-histórico abre, portanto, uma janela com
vista para o passado familiar remoto de quase todos nós. De quebra,
ainda deixa claro que essa vista muitas vezes não é tão linda
quanto o Pão de Açúcar: o mero fato de a parte indígena da nossa
equação populacional ser muito mais visível pelo lado materno é,
por si só, significativo.
Antropólogos e geneticistas contam com
um equivalente igualmente útil do mtDNA para estudar as linhagens
paternas. Trata-se do cromossomo Y, a marca genômica da
masculinidade — como todos deveríamos aprender no ensino médio,
homens herdam um cromossomo X da mãe e um Y do pai, enquanto
mulheres se caracterizam pela dobradinha de cromossomos X. Sabe
quantos brasileiros, de qualquer cor de pele, carregam hoje um
cromossomo Y indígena? Quase nenhum — com exceção dos que ainda
se identificam como membros de uma tribo ameríndia, obviamente. Esse
tipo de assimetria é típico de populações conquistadas em todos
os tempos e em qualquer lugar do mundo, infelizmente. Os israelitas
da Bíblia, os macedônios de Alexandre, o Grande, os mongóis de
Genghis Khan e, óbvio, os portugueses de Martim Afonso de Souza
sempre seguiram basicamente o mesmo figurino: numa operação de
conquista, os homens dos grupos vencidos são mortos ou escravizados,
e as mulheres viram concubinas. Nenhum outro modelo é capaz de
explicar o tamanho da diferença entre o que enxergamos nas duas
rotas paralelas, a do mtDNA e a do cromossomo Y.
Esse talvez seja o jeito mais pessoal de
encarar a questão do “para que serve” entender a pré-história
desta Terra de Vera Cruz. Há pelo menos outro ângulo, porém, para
o qual eu gostaria de chamar a atenção do respeitável público.
Estou me sentindo um ancião contemporâneo de Matusalém ao escrever
isto, mas vamos lá: o fato é que vivemos numa época ridiculamente
cínica, e uma das características desse cinismo hodierno é a mania
de zombar da ideia de que a história é a mestra da vida — ou,
como se dizia antigamente, a ideia de que quem não conhece a própria
história está fadado a repeti-la. É claro que essa visão tem seus
problemas (o mais óbvio é a tendência a transformar todos os
personagens do passado em exemplos a serem seguidos ou vilões a
serem odiados), mas a saga do Brasil pré-histórico, especialmente
na versão repaginada que estamos descobrindo nos últimos tempos,
tem implicações inegavelmente importantes para o que estamos
fazendo com este colosso continental que nos coube, a nossa parte do
latifúndio planetário.
Recorde que, como contei não muitos
parágrafos atrás, os indícios de uma densa ocupação humana na
Amazônia e em outros lugares do país antes da chegada dos
portugueses são cada vez mais claros. Nossos amigos Kuikuro, junto
com seus colegas antropólogos, resumiram isso de forma muito
evocativa no título de seu artigo para a Science, ao sugerir que,
antes de 1500, a maior floresta tropical do mundo, longe de ser
virginalmente intocada, estava mais para cultural parkland — uma
expressão inglesa chatinha de traduzir, mas que talvez corresponda a
algo como “um parque gestado pela cultura humana”. O curioso, ao
menos do nosso ponto de vista atual, é que, após o choque inicial
do contato entre os primeiros brasileiros e a megafauna da Era do
Gelo, a qual acabou desaparecendo, o aumento da população e da
complexidade social dos ameríndios, que foi moldando vastas áreas
de floresta tropical e de outros espaços à imagem e semelhança dos
povos nativos, não parece ter sido suficiente para empobrecer de
forma significativa e/ou duradoura os ambientes do futuro Brasil.
Não é minha intenção aqui reeditar o
mito do bom selvagem, cuja sobrevivência é um desserviço tanto
para descendentes de europeus, estimulando-os a enxergar os indígenas
com condescendência e paternalismo, quanto para os povos nativos,
retratando-os como algo diferente do que no fundo são: humanos, como
todos nós. O mundo está cheio de exemplos de degradação ambiental
praticada por grupos indígenas sem nenhuma “ajuda” de invasores
ocidentais (que o digam os moas, aves gigantescas impiedosamente
transformadas em churrasco até a extinção pelos maoris da Nova
Zelândia). Ninguém vive, nem jamais viveu ou viverá, “em
perfeito equilíbrio com a natureza”. Mesmo assim, o paradoxo
permanece. De alguma maneira, os xinguanos e os habitantes primevos
de Marajó, de Altamira e de outros lugares encontraram maneiras de
transformar o ambiente que ocuparam — e que exploraram de forma
relativamente intensa e planejada, aliás — sem bagunçar tudo,
diferentemente do que o Estado e a iniciativa privada da República
Federativa do Brasil têm feito desde o último século. Acho difícil
que não tenhamos nada a aprender com eles. No mínimo, sou capaz de
apostar que o pessoal da Embrapa (a gloriosa Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária, uma das grandes responsáveis pelo nosso
status como potência agropecuária tropical) faria de tudo para
pegar carona numa máquina do tempo e aprender, tintim por tintim, a
“receita” da terra preta amazônica com os agrônomos indígenas
do ano 1000 d.C. Aliás, excetuando-se o pequeno detalhe da máquina
do tempo, é exatamente isso que pesquisadores da Embrapa e de outros
lugares têm feito nas últimas décadas: experimentar diferentes
formas de recriar as propriedades interessantíssimas da terra preta.
Quem ainda acha que esse tipo de
preocupação não passa de obsessão de “ecochato” ou maluquice
de abraçador de árvore deveria abrir os olhos e os ouvidos, nem que
seja para prestar atenção a algumas das mazelas que preencheram o
noticiário nacional dos últimos anos — da seca em São Paulo ou
em Manaus ao mar de lama em Mariana. A saúde do seu bolso e mesmo a
saúde física das pessoas ao seu redor vão depender, em grande
medida, de soluções menos burras para os desafios que as primeiras
civilizações brasileiras já enfrentavam. Pensando de forma ainda
mais ampla, o estudo do passado remoto, sobretudo quando enfrentamos
escalas de espaço e, tempo tão vastas quanto as que serão nosso
mote nas próximas páginas, força-nos a encarar uma questão
difícil de responder, porém essencial: quais são as forças por
trás da trajetória de uma civilização? Será que existe um
caminho único rumo ao “desenvolvimento”, rumo ao máximo
bem-estar humano possível, ou seja lá qual padrão você decida
adotar como indicativo de uma “boa sociedade”? Desse ponto de
vista, dá para a gente tentar se perguntar por que as sociedades
nativas do Brasil não construíram, digamos, pirâmides de pedra
como as que existem no México e na América Central — a resposta
terá de ser bastante especulativa, mas é possível dar ao menos um
chute bem-informado. Por outro lado, é também relevante tentar
entender como esses nativos conseguiram realizar outras coisas
igualmente importantes com as matérias-primas que tinham à mão, e
o que isso significa para nós, que herdamos a terra que eles
pisavam.
Imagino que você já esteja saciado de
preliminares. É hora de tentar descobrir quem, afinal, era essa moça
chamada Luzia.
Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral
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