quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Maldição

No dia seguinte, de madrugada, Zorba enfiou-se na mina. Eles haviam avançado muito, galeria adentro do bom veio, a água pingava do teto, os operários patinavam na lama negra.
Zorba, há dois dias, havia feito trazerem caibros para consolidar a galeria. Mas estava inquieto. Os troncos não eram grossos como necessário, e com seu instinto profundo, que o levava a sentir o que se passava nesse labirinto subterrâneo como fosse seu próprio corpo, ele sabia que o madeirame não era seguro; ele ouvia, leves ainda, rangidos imperceptíveis para os outros, como se a armadura do teto gemesse sob o peso.
Outra coisa ainda aumentava a inquietação de Zorba nesse dia: no momento em que ele se preparava para descer a galeria, o padre da aldeia, o Padre Stefânio, passou em sua mula dirigindo-se às pressas para dar os últimos sacramentos a uma freira moribunda.
Zorba teve felizmente tempo de cuspir três vezes no chão antes que o padre lhe dirigisse a palavra.
Bom dia, padre! — respondeu ele, entre os dentes cerrados, à saudação do padre.
E, em tom mais baixo:
Tua maldição sobre mim — murmurou ele.
Ele sabia, porém, que esses exorcismos não eram suficientemente, e entrou de novo, nervoso, na galeria.
Um odor pesado de linhita e acetileno. Os operários já haviam começado a consolidar os caibros e a sustentar a galeria.
Zorba desejou-lhes bom dia, brusco, enfarruscado; enrolou as mangas e se pôs a trabalhar.
Uma dezena de operários atacavam o veio a golpes de picaretas, atiravam o carvão a seus pés, outros o apanhavam com pás e, em pequenas carretas, o transportavam para fora.
Subitamente Zorba parou, fez sinal aos operários para fazerem o mesmo e apurou o ouvido. Como o cavaleiro se confunde com o cavalo, formando com ele uma coisa só, como o capitão com o seu navio, Zorba e a mina faziam uma coisa só; sentia a galeria se ramificar como veias em suas carnes, e o que as massas escuras de carvão não podiam sentir, Zorba o sentia com uma consciente lucidez humana.
Tendo apurado sua grande orelha peluda, ele escutava. Nesse momento eu cheguei. Como se tivesse tido um pressentimento, como se uma mão me houvesse empurrado, acordei sobressaltado. Vesti-me às pressas e pulei para fora, sem saber por que me apressava tanto nem aonde ia; mas, meu corpo, sem hesitar, havia tomado o caminho da mina. Cheguei exatamente na hora em que Zorba, inquieto, apurava a orelha para escutar.
Nada — disse ele ao fim de um instante. — tive a impressão... ao trabalho, rapazes!
Voltou-se, viu-me, franziu os lábios:
O que está fazendo aqui tão cedo, patrão?
Aproximou-se de mim:
Você não vai subir para tomar ar puro, patrão? — soprou-me ele. — venha aqui em outra hora para dar seu passeio.
Que se passa, Zorba?
Nada... eu tive uma impressão. Vi um padre hoje de manhã cedo. Vá embora!
Se há perigo, não seria vergonhoso se eu fosse embora?
Sim — respondeu Zorba.
Você iria embora?
Não.
Então?
As medidas que eu tomo para Zorba — disse enervado, — não são as mesmas para os outros. Mas, se você já viu que seria vergonhoso ir embora, não vá. Fique. Pior para você!
Apanhou o martelo, se pôs na ponta dos pés e começou a pregar com grandes pregos a sustentação do teto. Tirei de um caibro uma lâmpada de acetileno, ia a vinha na lama, olhando o veio marrom-escuro e brilhante. Florestas imensas haviam sido engolidos, milhões de anos passaram, a terra mastigou, digeriu, transformou suas crianças. As árvores se transformavam em linhita, a linhita em carvão e Zorba chegou...
Recoloquei a lâmpada e olhei Zorba trabalhar. Ele se entregava por inteira à tarefa; não tinha mais nada na cabeça, se identificava com a terra, a picareta e o carvão. Fazia corpo com o martelo e os pregos, para lutar contra a madeira. Sofria com o teto da galeria que se arqueava. Lutava com toda a montanha para tomar-lhe o carvão, pela astúcia, pela violência. Zorba sentia a matéria com uma segurança infalível, e a atingia, sem se enganar, onde ela era mais fraca e podia ser vencida. E, como eu o via naquele momento, enfarruscado, cheio de pó, apenas com o branco dos olhos que luziam, parecia-me que ele havia se camuflando em carvão, se havia transformado em carvão, para poder mais facilmente aproximar-se do adversário e penetrar em suas defesas.
Vai em frente, Zorba! — gritei eu, entusiasmado numa admiração ingênua.
Mas ele nem se virou. Como poderia naquele momento se distrair com um camundongo comedor de papel que, em vez de picareta, tinha na mão um miserável toco de lápis? Estava ocupado, não se dignar falar. Não me fale enquanto estou trabalhando, me disse ele uma noite, eu posso estourar. — estourar, Zorba, por quê? — aí vem você com seus porquês! Como um garoto. Como explicar? Estou todo dedicado ao trabalho, tenso, dos pés a cabeça, colado na pedra ou no carvão ou então no santuri. Se você me tocar nessa hora de repente, se você me fala e eu me volto, posso estourar. Aí está!
Olhei meu relógio: dez horas.
Já é tempo de comer alguma coisa, meus amigos — disse eu. — vocês perderam a hora.
Os operários jogaram imediatamente suas ferramentas em um canto, enxugaram o suor de seus rostos, se preparando para sair da galeria. Zorba, inteiramente entregue ao trabalho, não ouvira. E mesmo que tivesse escutado, não daria resposta. Ele apurava de novo o ouvido, inquieto.
Esperem — disse eu. — levem um cigarro! Procurava em meus bolsos; em volta de mim os operários aguardavam.
Subitamente, Zorba sobressaltou-se. Colou a orelha na parede da galeria. À luz de acetileno eu distinguia sua boca convulsivamente aberta.
Que há com você, Zorba? — gritei.
Mas, nesse momento, o teto todo da galeria estremeceu...
Corram! — gritou Zorba com uma voz rouca. — corram!
Nós nos atiramos em direção à saída; mas não tínhamos atingido o primeiro vigamento quando um segundo estalar se fez ouvir, ainda mais forte, sobre nossas cabeças. Zorba, enquanto isso, estava erguendo um tronco de arvore para sustentar uma viga que cedia. Se ele conseguisse fazê-lo rapidamente, talvez pudesse sustentar por alguns segundos o teto, o que nos daria tempo de escapar.
Corram! — repetiu a voz de Zorba, abafada dessa vez, como se saísse das entranhas da terra.
Todos, com a covardia que muitas vezes toma conta dos homens nos momentos críticos, nos precipitamos para fora, sem nos preocuparmos com Zorba. Mas ao fim de alguns segundos refiz-me e lancei-me em sua direção.
Zorba — gritei. — Zorba!
Pareceu-me ter gritado, mas em seguida vi que o som não saíra de minha garganta. O medo me havia estrangulado a voz.
A vergonha assaltou-me. Dei um passo para trás e estendi o braço. Zorba havia acabado de consolidar a grossa viga; escorrendo na lama, ele deu um pulo para a saída. Na meia obscuridade, levado pelo impulso, ele se jogou contra mim. Sem querer, caímos na lama um nos braços do outro.
Vamos sair daqui! — disse ele com uma voz estrangulada. — vamos embora!
Corremos e chegamos à luz. Os operários reunidos na entrada espiavam, sem uma palavra, trêmulos.
Ouviu-se um segundo estalo, mais forte, como o de uma árvore quebrada pela tempestade. Subitamente, um rugido formidável soou, reboou como um trovão, estremeceu a montanha, e a galeria desmoronou.
Bondade divina! — murmuravam os operários se persignando.
Vocês deixaram as picaretas lá dentro? — perguntou Zorba com cólera.
Os operários se calaram.
Por que não as trouxeram? — gritou ele, furioso. — é! Os corajosos se borraram! As ferramentas que se danem!
Essa não é hora de se preocupar com as picaretas, Zorba — disse interrompendo. — ainda bem que todos escaparam são e salvos. Devemos muito a você, Zorba. Graças a você estamos vivos.
Estou com fome! — disse Zorba. — isso me abriu o apetite.
Pegou a marmita que continha o seu almoço e que ele havia colocado sobre uma pedra, abriu-a, tirou pão, azeitonas, cebolas, uma batata cozida, e uma garrafinha de vinho.
Vamos, vamos comer, pessoal! — disse ele de boca cheia.
Comia com avidez, às pressas, como se tivesse bruscamente perdido muitas forças e quisesse agora refazê-las.
Comia curvado, silencioso; apanhou a garrafinha e fez correr o vinho por sua garganta ressecada.
Os operários tomara ânimo, abriram suas marmitas e começaram a comer. Estavam todos sentados, de pernas cruzadas, em volta de Zorba, e comiam olhando para ele. Teriam se atirado a seus pés, beijando-lhes a mão, mas eles o sabiam brusco e estranho, e nenhum ousava começar.
Por fim, Mequelis, o mais idoso, que tinha grandes bigodes grisalhos, se decidiu e falou:
Se você não estivesse lá, mestre Alexis — disse ele, — nossos filhos seriam órfãos a essa hora.
Cale a boca! — disse Zorba de boca cheia, e ninguém ousou dizer mais uma palavra.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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