Houve um tempo em que, para mim — e
para muitos outros, meus coetâneos ou de faixas etárias próximas
—, Hemingway era um deus. E foram bons tempos, que recordo com
satisfação, sem que pese a sombra daquela indulgência irônica com
que se consideram modas e febres juvenis. Eram tempos sérios,
vividos por nós com seriedade e simultaneamente com arrogância e
pureza de coração, e em Hemingway poderíamos também encontrar uma
lição de pessimismo, de distanciamento individualista, de adesão
superficial às experiências mais cruas: havia tudo isso, em
Hemingway, porém não o líamos assim ou tínhamos outras coisas na
cabeça; o resultado é que a lição que dele tirávamos era uma
atitude aberta e generosa, de empenho prático — técnico e moral
ao mesmo tempo — nas coisas que deviam ser feitas, de limpidez de
olhar, de recusa a contemplar-se e lamentar-se, de presteza em captar
um ensinamento de vida, o valor de uma pessoa numa frase bruscamente
trocada, num gesto. Logo começamos a perceber nele os limites, os
vícios: o seu mundo poético e o estilo, aos quais pagara grandes
tributos em minhas primeiras experiências literárias, se revelavam
estreitos, fáceis de se tornarem maneiristas; e aquele jeito de
viver — e a filosofia de vida — de turismo cruento começou a
inspirar-me desconfiança e até aversão e desgosto. Mas hoje, com
uma dezena de anos de distância, fazendo as contas de meu
apprenticeship hemingwaiano posso encerrar o balanço no
ativo. “Não ganhou a parada, velho”, posso dizer-lhe, recaindo
pela última vez em sua dicção, “não conseguiu se tornar um
mauvais maître.” Este discurso sobre Hemingway —
justamente hoje que ganhou o Prêmio Nobel, um fato que não
significa absolutamente nada, mas que é uma ocasião como qualquer
outra para pôr no papel algumas ideias que carrego há bastante
tempo — tenta definir simultaneamente aquilo que Hemingway foi para
nós e aquilo que é agora, aquilo que nos afastou dele e aquilo que
continuamos a encontrar em suas páginas e não em outras.
Naquela época, certamente houve uma
inspiração poética e política conjunta, um impulso confuso para o
antifascismo ativo, em contraposição ao antifascismo da pura
inteligência, que nos levou em direção a Hemingway. Ou melhor, num
determinado ponto, para ser sinceros, era a constelação
Hemingway-Malraux que nos atraía, que simbolizava o antifascismo
internacional, o front da Guerra Espanhola. Por sorte nós,
italianos, tínhamos tido D’Annunzio para vacinar-nos contra certas
inclinações “heroicas”, e o fundo estetizante de Malraux logo
foi descoberto. (Para alguns, na França, como Roger Vailland, que
pode ser considerado um tipo simpático, um tanto superficial mas
genuíno, aquele binômio Hemingway-Malraux foi um fato fundamental.)
Também para Hemingway a definição de dannunziano foi usada e, em
certos casos, isso faz sentido. Mas Hemingway escreve seco, quase
nunca exagera, não incha, tem os pés no chão (quase sempre,
deixemos claro: não posso aguentar o “lirismo” de Hemingway: As
neves do Kilimandjaro são para mim o que fez de pior), se atém
às coisas: todas as características que, com o dannunzianismo,
entram em choque. E afinal é bom ir devagar com essas definições:
se basta apreciar a vida ativa e as belas mulheres para ser chamado
de dannunziano, então viva os dannunzianos. Mas o problema não se
coloca nestes termos: o mito ativista de Hemingway se situa num outro
modo da história contemporânea, bem mais atual e ainda
problemática.
O herói de Hemingway quer identificar-se
com as ações que executa, ser ele mesmo na soma de seus gestos, na
adesão a uma técnica manual ou pelo menos prática, trata de não
ter outro problema, outro empenho além de saber fazer bem uma coisa:
pescar bem, caçar, explodir uma ponte, assistir a uma corrida como
deve ser, inclusive fazer amor bem. Mas ao redor, sempre, existe algo
de que quer fugir, um sentido de inutilidade de tudo, de desespero,
de derrota, de morte. Concentra-se na estrita observância de seu
código, daquelas regras desportivas que em todos os lugares ele
sente necessidade de impor a si com o empenho de regras morais, tanto
numa luta contra um tubarão quanto numa posição assediada por
falangistas. Aferra-se àquilo, pois fora daquilo existe o vácuo, a
morte. (Embora não fale disso; pois sua primeira regra é o
understatement.) Um dentre os mais belos e marcadamente seu
dos 45 contos, “O grande rio dos dois corações” (The big
two-hearted river), não passa de um resumo de tudo aquilo que faz um
homem que vai pescar sozinho, remonta o rio, procura um bom lugar
para instalar a barraca, faz comida, entra no rio, prepara a linha de
pescar, pesca trutas pequenas, atira-as de volta para a água, pesca
outra maior, e assim por diante. Nada mais que uma despojada lista de
gestos, rápidas e límpidas imagens de passagem, e algumas
genéricas, notação não muito convincente de um estado de ânimo,
tipo “Estava mesmo contente”. É um conto tristíssimo, com um
sentido de opressão, de angústia indistinta que o encurrala por
todos os lados, quanto mais a natureza é serena e a atenção está
ocupada nas operações da pesca. Ora, o conto em que “não
acontece nada” não é coisa nova. Mas tomemos um exemplo recente e
próximo de nós: “Il taglio del bosco” de Cassola (que tem em
comum com Hemingway somente o amor por Tolstói), em que se descrevem
as operações de um lenhador, tendo implícita e sempre presente a
dor pela morte da mulher. Em Cassola, os termos do conto são o
trabalho de um lado e um sentimento bem preciso do outro: a morte de
uma pessoa querida, uma situação que poderia ser de sempre e de
todos. Em Hemingway o esquema é semelhante, mas completamente
diferente o conteúdo: de um lado um compromisso desportivo, que não
tem outro sentido fora de sua execução formal e, de outro, algo de
desconhecido, o nada. Estamos numa situação-limite, que se situa
numa sociedade bem precisa, num momento bem determinado da crise do
pensamento burguês.
Com filosofia, Hemingway, é notório,
não se mete. Mas com a filosofia americana, ligada tão diretamente
a uma “estrutura”, a um ambiente de atividade e de concepções
práticas, a sua poética apresenta coincidências que são tudo
menos casuais. Ao neopositivismo que propõe as regras do pensamento
num sistema fechado, sem outra validade a não ser nele mesmo,
corresponde a fidelidade ao código ético-desportivo dos heróis
hemingwaianos, única realidade segura num universo incognoscível.
Ao behaviorismo, que identifica a realidade do homem com os
paradigmas de seu comportamento, corresponde o estilo de Hemingway,
que no elenco dos gestos, nas provocações de uma conversa sumária,
queima a realidade inatingível dos sentimentos e dos pensamentos.
(Sobre o code of behaviour hemingwaiano, sobre a conversação
“inarticulada” de suas personagens, vejam-se algumas inteligentes
observações em Marcus Cunliffe, The literature of the U. S.,
Penguin Books, 1954, pp. 271 ss.)
Opressivo, o horror vacui do nada
existencialista. “Nada y pues nada y nada y pues nada”, pensa o
garçom de “Um lugar limpo, bem iluminado”. E “O jogador, a
freira e o rádio” termina com a constatação de que tudo é “ópio
do povo”, ou seja, ilusória proteção contra um mal generalizado.
Nesses dois contos (ambos de 1933) podem ser vistos os textos do
“existencialismo” aproximativo de Hemingway. Mas não é em tais
declarações mais explicitamente “filosóficas” que podemos
confiar, e sim em seu modo geral de representar o negativo, o
insensato, o desesperado da vida contemporânea, desde o tempo de
Fiesta (1926) com seus eternos turistas, erotômanos e
beberrões. A vacuidade do diálogo pausado e divagante, cujo
antecedente mais desvelado pode ser visto no “falar de outra coisa”
à beira do desespero das personagens de Tchekhov, se colore de toda
a problemática do irracionalismo novecentista. Os pequeno-burgueses
de Tchekhov, derrotados em tudo mas não na consciência da dignidade
humana, fincam os pés no chão sob a ameaça do ciclone e conservam
a esperança de um mundo melhor. Os americanos sem raízes de
Hemingway estão dentro do ciclone com alma e corpo, e tudo aquilo
que lhe sabem opor é tratar de esquiar bem, de disparar bem nos
leões, de orientar bem as relações entre homem e mulher, entre
homem e homem, técnicas e virtudes que certamente ainda valerão
naquele mundo melhor, em que, contudo, eles não acreditam. Entre
Tchekhov e Hemingway, aconteceu a Primeira Guerra Mundial: a
realidade se configura como um grande massacre. Hemingway se recusa a
colocar-se do lado do massacre, seu antifascismo é uma das seguras,
nítidas “regras do jogo” em que se baseia sua concepção da
vida, porém aceita o massacre como cenário natural do homem
contemporâneo. O noviciado de Nick Adams — a personagem
autobiográfica de seus primeiros e mais poéticos contos — é um
treinamento para suportar a brutalidade do mundo. Começa no “Campo
indiano”, onde o pai médico opera uma parturiente indiana com um
canivete de pesca, enquanto o marido silenciosamente, não aguentando
a visão da dor, se corta a garganta. Quando o herói de Hemingway
buscar um ritual simbólico que lhe represente essa concepção do
mundo, não encontrará coisa melhor que a tourada, abrindo a
passagem para as sugestões do primitivo e do bárbaro, na linha de
D. H. Lawrence e de certa etnologia.
Nesse acidentado panorama cultural se
situa Hemingway, e aqui podemos, como termo de comparação, recorrer
a um outro nome citado muitas vezes a propósito dele, o de Stendhal:
nome não arbitrário, este, mas que nos é indicado por uma sua
predileção declarada, e justificado por uma certa analogia na
programática sobriedade de estilo — embora tão mais sábia,
“flaubertiana”, no escritor moderno — e em certo paralelismo de
histórias biográficas e às vezes de lugar (aquela Itália
“milanesa”). O herói stendhaliano está na fronteira entre a
lucidez racionalista do século XVIII e o Sturm und Drang
romântico, entre a pedagogia iluminista dos sentimentos e a
exaltação romântica do individualismo amoral. O herói de
Hemingway se encontra na mesma encruzilhada cem anos depois, quando o
pensamento burguês empobreceu no que tinha de melhor — transmitido
como herança à nova classe —, mas ainda se desenvolve, entre
becos sem saída e soluções parciais e contraditórias: do velho
tronco do Iluminismo ramificam as filosofias tecnicistas americanas e
o tronco romântico tem seus frutos extremos no niilismo
existencialista. O herói de Stendhal, que também era filho da
Revolução, aceitava o mundo da Santa Aliança e se submetia à
regra do jogo da hipocrisia, para combater a própria batalha
individual. O herói de Hemingway, que viu inclusive se abrir a
grande alternativa de outubro, aceita o mundo do imperialismo e se
move entre os seus massacres, combatendo ele também, com lucidez e
distanciamento, numa batalha que sabe perdida desde o começo porque
solitária.
Ter sentido a guerra como a imagem mais
verdadeira, como a realidade normal do mundo burguês na idade
imperialista, foi a intuição fundamental de Hemingway. Aos dezoito
anos, antes ainda da intervenção americana, só pelo gosto de ver
como era a guerra, conseguiu atingir o front italiano, de início
como motorista de ambulância, depois como diretor de uma cantina,
fazendo a ligação de bicicleta entre as trincheiras do Piave
(conforme ficamos sabendo com o novo livro The apprenticeship of
Ernest Hemingway, de Charles A. Fenton, Farrar and Straus, 1954).
(E quanto da Itália ele entendeu, e como já na Itália de 1917
soube ver o rosto “fascista” e o rosto popular contrapostos e os
representou, em 1929, no mais belo de seus romances, A farewell to
arms, e tudo quanto entendeu ainda da Itália de 1949, e
representou em seu romance menos feliz mas interessante sob vários
aspectos, Across the river and in the trees, e outro tanto que
ao contrário jamais entendeu, não logrando sair de sua casca de
turista, poderia ser objeto de um longo ensaio.) Seu primeiro livro
(1924, e depois, ampliado, 1925), com os tons definidos pela Grande
Guerra e pelos massacres na Grécia, aos quais assistiu como
jornalista, se intitula In our time, título que em si não
nos diz muito, mas que se carrega de uma ironia cruel se é verdade
que ele queria relembrar um versículo do Book of common prayer:
Give peace in our time o Lord. O sabor da guerra transcrito nos
breves capítulos de In our time foi decisivo para Hemingway, como
para Tolstói as impressões descritas nos Relatos de Sebastopol.
E não sei se foi a admiração de Hemingway por Tolstói que o levou
a buscar a experiência da guerra ou esta esteve na origem daquela.
Certamente o modo de estar na guerra descrito por Hemingway não é
mais o de Tolstói, nem aquele de um outro autor que lhe era caro, o
pequeno clássico americano Stephen Crane. Essa é guerra em países
longínquos, vista com distanciamento do estrangeiro: Hemingway
antecipa aquilo que será o espírito do soldado americano na Europa.
Se o cantor do imperialismo inglês,
Kipling, tinha ainda uma ligação precisa com um país, razão pela
qual a sua Índia se torna também ela uma pátria, em Hemingway
(que, à diferença de Kipling, não queria “cantar” nada mas só
registrar fatos e coisas), há o espírito da América que se lança
pelo mundo sem um claro porquê, seguindo o impulso de sua economia
em expansão.
Mas não é por esse testemunho da
realidade da guerra, por essa denúncia do massacre, que Hemingway
mais nos interessa. Como todo poeta não se identifica inteiramente
com as ideias que encarna, assim Hemingway não está inteiro na
crise da cultura que se acha por trás dele. Para além dos limites
do behaviorismo, aquele reconhecer o homem em suas ações, em seu
estar ou não à altura das tarefas que lhe são colocadas, é também
um modo verdadeiro e justo de conceber a existência, que pode ser
tornado próprio por uma humanidade mais concreta que aquela dos
heróis hemingwaianos, cujas ações não são quase nunca um
trabalho — a não ser um trabalho “excepcional” como o
do pescador de tubarões —, ou uma tarefa precisa de luta. Das suas
touradas, com toda a sua técnica, não sabemos o que fazer; mas a
seriedade nítida e precisa com a qual suas personagens sabem acender
um fogo ao ar livre, lançar uma linha de pesca, colocar uma
metralhadora na posição justa, isso nos interessa e nos serve. Por
aqueles momentos de perfeita integração do homem no mundo, nas
coisas que faz, por aqueles momentos em que o homem se encontra em
paz com a natureza mas lutando contra ela, em harmonia com a
humanidade mesmo no fogo de uma batalha, podemos deixar de lado todo
o Hemingway mais vistoso e celebrado. Se alguém conseguirá um dia
escrever poeticamente sobre a relação do operário com sua máquina,
com as operações precisas de seu trabalho, terá de retomar esses
momentos hemingwaianos, retirando-os da moldura de futilidade
turística ou de brutalidade ou de tédio, restituindo-os ao contexto
orgânico do mundo produtivo moderno do qual Hemingway os retirou e
isolou. Hemingway compreendeu alguma coisa sobre como se está no
mundo de olhos abertos e enxutos, sem ilusões nem misticismos, como
se está sozinho sem angústias e como se está acompanhado melhor
que sozinho: e, sobretudo, elaborou um estilo que exprime de forma
completa a sua concepção da vida, e que, se às vezes acusa os seus
limites e vícios, pode em suas melhores produções (como nos contos
de Nick) ser considerada a linguagem mais seca e imediata, a mais
isenta de excessos e inchações, a mais limpidamente realista da
prosa moderna. (Um crítico soviético, J. Kashkin, num belo ensaio
que saiu num número de 1935 de International Literature e foi
reproduzido no livro que documenta o simpósio organizado por John K.
M. Mc Caffery Ernest Hemingway: the man and his work, The
World Publishing Company, 1950, compara o estilo desses contos ao de
Pushkin narrador.)
De fato, não existe nada mais distante
de Hemingway que o simbolismo enfumaçado, o esoterismo com fundo
religioso a qual pretende reconduzi-lo Carlos Baker no volume
Hemingway, the writer as artist (Princeton University Press,
1952, recentemente traduzido em italiano por G. Ambrosoli para
Guanda). Livro muito rico de informações, de citações de
correspondências inéditas de Hemingway com o próprio Baker, com
Fitzgerald e outros, e enriquecido com preciosas listas
bibliográficas (que faltam na tradução) e que contém também
singulares esclarecimentos úteis, como a relação polêmica — e
não a adesão — de Hemingway com a lost generation em
Fiesta, mas que é baseado em esquemas críticos
rocambolescos, como a contraposição entre “casa” e “não
casa”, entre “montanha” e “planície”, e fala de
“simbologia cristã” a propósito de O velho e o mar.
Mais modesto e mais filologicamente
sumário é um outro pequeno volume americano: Philip Young, Ernest
Hemingway, Rinehart, 1952. Também Young, coitado, tem de se
esforçar para demonstrar que Hemingway jamais foi comunista, que não
é un-American, que até se pode ser rude e pessimista sem ser
un-American. Mas reconheçamos a imagem do nosso Hemingway nas
linhas gerais de sua impostação crítica, que atribui um valor
fundamental aos contos da série Nick Adams, e os situa na tradição
aberta por aquele livro maravilhoso — pela linguagem, pela
plenitude realista e aventurosa, pelo sentido da natureza, pela
adesão aos problemas sociais da época e do país — que é
Huckleberry Finn de Mark Twain.
Italo Calvino, in Por que ler os clássicos
Nenhum comentário:
Postar um comentário