segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Hemingway e nós

Houve um tempo em que, para mim — e para muitos outros, meus coetâneos ou de faixas etárias próximas —, Hemingway era um deus. E foram bons tempos, que recordo com satisfação, sem que pese a sombra daquela indulgência irônica com que se consideram modas e febres juvenis. Eram tempos sérios, vividos por nós com seriedade e simultaneamente com arrogância e pureza de coração, e em Hemingway poderíamos também encontrar uma lição de pessimismo, de distanciamento individualista, de adesão superficial às experiências mais cruas: havia tudo isso, em Hemingway, porém não o líamos assim ou tínhamos outras coisas na cabeça; o resultado é que a lição que dele tirávamos era uma atitude aberta e generosa, de empenho prático — técnico e moral ao mesmo tempo — nas coisas que deviam ser feitas, de limpidez de olhar, de recusa a contemplar-se e lamentar-se, de presteza em captar um ensinamento de vida, o valor de uma pessoa numa frase bruscamente trocada, num gesto. Logo começamos a perceber nele os limites, os vícios: o seu mundo poético e o estilo, aos quais pagara grandes tributos em minhas primeiras experiências literárias, se revelavam estreitos, fáceis de se tornarem maneiristas; e aquele jeito de viver — e a filosofia de vida — de turismo cruento começou a inspirar-me desconfiança e até aversão e desgosto. Mas hoje, com uma dezena de anos de distância, fazendo as contas de meu apprenticeship hemingwaiano posso encerrar o balanço no ativo. “Não ganhou a parada, velho”, posso dizer-lhe, recaindo pela última vez em sua dicção, “não conseguiu se tornar um mauvais maître.” Este discurso sobre Hemingway — justamente hoje que ganhou o Prêmio Nobel, um fato que não significa absolutamente nada, mas que é uma ocasião como qualquer outra para pôr no papel algumas ideias que carrego há bastante tempo — tenta definir simultaneamente aquilo que Hemingway foi para nós e aquilo que é agora, aquilo que nos afastou dele e aquilo que continuamos a encontrar em suas páginas e não em outras.
Naquela época, certamente houve uma inspiração poética e política conjunta, um impulso confuso para o antifascismo ativo, em contraposição ao antifascismo da pura inteligência, que nos levou em direção a Hemingway. Ou melhor, num determinado ponto, para ser sinceros, era a constelação Hemingway-Malraux que nos atraía, que simbolizava o antifascismo internacional, o front da Guerra Espanhola. Por sorte nós, italianos, tínhamos tido D’Annunzio para vacinar-nos contra certas inclinações “heroicas”, e o fundo estetizante de Malraux logo foi descoberto. (Para alguns, na França, como Roger Vailland, que pode ser considerado um tipo simpático, um tanto superficial mas genuíno, aquele binômio Hemingway-Malraux foi um fato fundamental.) Também para Hemingway a definição de dannunziano foi usada e, em certos casos, isso faz sentido. Mas Hemingway escreve seco, quase nunca exagera, não incha, tem os pés no chão (quase sempre, deixemos claro: não posso aguentar o “lirismo” de Hemingway: As neves do Kilimandjaro são para mim o que fez de pior), se atém às coisas: todas as características que, com o dannunzianismo, entram em choque. E afinal é bom ir devagar com essas definições: se basta apreciar a vida ativa e as belas mulheres para ser chamado de dannunziano, então viva os dannunzianos. Mas o problema não se coloca nestes termos: o mito ativista de Hemingway se situa num outro modo da história contemporânea, bem mais atual e ainda problemática.
O herói de Hemingway quer identificar-se com as ações que executa, ser ele mesmo na soma de seus gestos, na adesão a uma técnica manual ou pelo menos prática, trata de não ter outro problema, outro empenho além de saber fazer bem uma coisa: pescar bem, caçar, explodir uma ponte, assistir a uma corrida como deve ser, inclusive fazer amor bem. Mas ao redor, sempre, existe algo de que quer fugir, um sentido de inutilidade de tudo, de desespero, de derrota, de morte. Concentra-se na estrita observância de seu código, daquelas regras desportivas que em todos os lugares ele sente necessidade de impor a si com o empenho de regras morais, tanto numa luta contra um tubarão quanto numa posição assediada por falangistas. Aferra-se àquilo, pois fora daquilo existe o vácuo, a morte. (Embora não fale disso; pois sua primeira regra é o understatement.) Um dentre os mais belos e marcadamente seu dos 45 contos, “O grande rio dos dois corações” (The big two-hearted river), não passa de um resumo de tudo aquilo que faz um homem que vai pescar sozinho, remonta o rio, procura um bom lugar para instalar a barraca, faz comida, entra no rio, prepara a linha de pescar, pesca trutas pequenas, atira-as de volta para a água, pesca outra maior, e assim por diante. Nada mais que uma despojada lista de gestos, rápidas e límpidas imagens de passagem, e algumas genéricas, notação não muito convincente de um estado de ânimo, tipo “Estava mesmo contente”. É um conto tristíssimo, com um sentido de opressão, de angústia indistinta que o encurrala por todos os lados, quanto mais a natureza é serena e a atenção está ocupada nas operações da pesca. Ora, o conto em que “não acontece nada” não é coisa nova. Mas tomemos um exemplo recente e próximo de nós: “Il taglio del bosco” de Cassola (que tem em comum com Hemingway somente o amor por Tolstói), em que se descrevem as operações de um lenhador, tendo implícita e sempre presente a dor pela morte da mulher. Em Cassola, os termos do conto são o trabalho de um lado e um sentimento bem preciso do outro: a morte de uma pessoa querida, uma situação que poderia ser de sempre e de todos. Em Hemingway o esquema é semelhante, mas completamente diferente o conteúdo: de um lado um compromisso desportivo, que não tem outro sentido fora de sua execução formal e, de outro, algo de desconhecido, o nada. Estamos numa situação-limite, que se situa numa sociedade bem precisa, num momento bem determinado da crise do pensamento burguês.
Com filosofia, Hemingway, é notório, não se mete. Mas com a filosofia americana, ligada tão diretamente a uma “estrutura”, a um ambiente de atividade e de concepções práticas, a sua poética apresenta coincidências que são tudo menos casuais. Ao neopositivismo que propõe as regras do pensamento num sistema fechado, sem outra validade a não ser nele mesmo, corresponde a fidelidade ao código ético-desportivo dos heróis hemingwaianos, única realidade segura num universo incognoscível. Ao behaviorismo, que identifica a realidade do homem com os paradigmas de seu comportamento, corresponde o estilo de Hemingway, que no elenco dos gestos, nas provocações de uma conversa sumária, queima a realidade inatingível dos sentimentos e dos pensamentos. (Sobre o code of behaviour hemingwaiano, sobre a conversação “inarticulada” de suas personagens, vejam-se algumas inteligentes observações em Marcus Cunliffe, The literature of the U. S., Penguin Books, 1954, pp. 271 ss.)
Opressivo, o horror vacui do nada existencialista. “Nada y pues nada y nada y pues nada”, pensa o garçom de “Um lugar limpo, bem iluminado”. E “O jogador, a freira e o rádio” termina com a constatação de que tudo é “ópio do povo”, ou seja, ilusória proteção contra um mal generalizado. Nesses dois contos (ambos de 1933) podem ser vistos os textos do “existencialismo” aproximativo de Hemingway. Mas não é em tais declarações mais explicitamente “filosóficas” que podemos confiar, e sim em seu modo geral de representar o negativo, o insensato, o desesperado da vida contemporânea, desde o tempo de Fiesta (1926) com seus eternos turistas, erotômanos e beberrões. A vacuidade do diálogo pausado e divagante, cujo antecedente mais desvelado pode ser visto no “falar de outra coisa” à beira do desespero das personagens de Tchekhov, se colore de toda a problemática do irracionalismo novecentista. Os pequeno-burgueses de Tchekhov, derrotados em tudo mas não na consciência da dignidade humana, fincam os pés no chão sob a ameaça do ciclone e conservam a esperança de um mundo melhor. Os americanos sem raízes de Hemingway estão dentro do ciclone com alma e corpo, e tudo aquilo que lhe sabem opor é tratar de esquiar bem, de disparar bem nos leões, de orientar bem as relações entre homem e mulher, entre homem e homem, técnicas e virtudes que certamente ainda valerão naquele mundo melhor, em que, contudo, eles não acreditam. Entre Tchekhov e Hemingway, aconteceu a Primeira Guerra Mundial: a realidade se configura como um grande massacre. Hemingway se recusa a colocar-se do lado do massacre, seu antifascismo é uma das seguras, nítidas “regras do jogo” em que se baseia sua concepção da vida, porém aceita o massacre como cenário natural do homem contemporâneo. O noviciado de Nick Adams — a personagem autobiográfica de seus primeiros e mais poéticos contos — é um treinamento para suportar a brutalidade do mundo. Começa no “Campo indiano”, onde o pai médico opera uma parturiente indiana com um canivete de pesca, enquanto o marido silenciosamente, não aguentando a visão da dor, se corta a garganta. Quando o herói de Hemingway buscar um ritual simbólico que lhe represente essa concepção do mundo, não encontrará coisa melhor que a tourada, abrindo a passagem para as sugestões do primitivo e do bárbaro, na linha de D. H. Lawrence e de certa etnologia.
Nesse acidentado panorama cultural se situa Hemingway, e aqui podemos, como termo de comparação, recorrer a um outro nome citado muitas vezes a propósito dele, o de Stendhal: nome não arbitrário, este, mas que nos é indicado por uma sua predileção declarada, e justificado por uma certa analogia na programática sobriedade de estilo — embora tão mais sábia, “flaubertiana”, no escritor moderno — e em certo paralelismo de histórias biográficas e às vezes de lugar (aquela Itália “milanesa”). O herói stendhaliano está na fronteira entre a lucidez racionalista do século XVIII e o Sturm und Drang romântico, entre a pedagogia iluminista dos sentimentos e a exaltação romântica do individualismo amoral. O herói de Hemingway se encontra na mesma encruzilhada cem anos depois, quando o pensamento burguês empobreceu no que tinha de melhor — transmitido como herança à nova classe —, mas ainda se desenvolve, entre becos sem saída e soluções parciais e contraditórias: do velho tronco do Iluminismo ramificam as filosofias tecnicistas americanas e o tronco romântico tem seus frutos extremos no niilismo existencialista. O herói de Stendhal, que também era filho da Revolução, aceitava o mundo da Santa Aliança e se submetia à regra do jogo da hipocrisia, para combater a própria batalha individual. O herói de Hemingway, que viu inclusive se abrir a grande alternativa de outubro, aceita o mundo do imperialismo e se move entre os seus massacres, combatendo ele também, com lucidez e distanciamento, numa batalha que sabe perdida desde o começo porque solitária.
Ter sentido a guerra como a imagem mais verdadeira, como a realidade normal do mundo burguês na idade imperialista, foi a intuição fundamental de Hemingway. Aos dezoito anos, antes ainda da intervenção americana, só pelo gosto de ver como era a guerra, conseguiu atingir o front italiano, de início como motorista de ambulância, depois como diretor de uma cantina, fazendo a ligação de bicicleta entre as trincheiras do Piave (conforme ficamos sabendo com o novo livro The apprenticeship of Ernest Hemingway, de Charles A. Fenton, Farrar and Straus, 1954). (E quanto da Itália ele entendeu, e como já na Itália de 1917 soube ver o rosto “fascista” e o rosto popular contrapostos e os representou, em 1929, no mais belo de seus romances, A farewell to arms, e tudo quanto entendeu ainda da Itália de 1949, e representou em seu romance menos feliz mas interessante sob vários aspectos, Across the river and in the trees, e outro tanto que ao contrário jamais entendeu, não logrando sair de sua casca de turista, poderia ser objeto de um longo ensaio.) Seu primeiro livro (1924, e depois, ampliado, 1925), com os tons definidos pela Grande Guerra e pelos massacres na Grécia, aos quais assistiu como jornalista, se intitula In our time, título que em si não nos diz muito, mas que se carrega de uma ironia cruel se é verdade que ele queria relembrar um versículo do Book of common prayer: Give peace in our time o Lord. O sabor da guerra transcrito nos breves capítulos de In our time foi decisivo para Hemingway, como para Tolstói as impressões descritas nos Relatos de Sebastopol. E não sei se foi a admiração de Hemingway por Tolstói que o levou a buscar a experiência da guerra ou esta esteve na origem daquela. Certamente o modo de estar na guerra descrito por Hemingway não é mais o de Tolstói, nem aquele de um outro autor que lhe era caro, o pequeno clássico americano Stephen Crane. Essa é guerra em países longínquos, vista com distanciamento do estrangeiro: Hemingway antecipa aquilo que será o espírito do soldado americano na Europa.
Se o cantor do imperialismo inglês, Kipling, tinha ainda uma ligação precisa com um país, razão pela qual a sua Índia se torna também ela uma pátria, em Hemingway (que, à diferença de Kipling, não queria “cantar” nada mas só registrar fatos e coisas), há o espírito da América que se lança pelo mundo sem um claro porquê, seguindo o impulso de sua economia em expansão.
Mas não é por esse testemunho da realidade da guerra, por essa denúncia do massacre, que Hemingway mais nos interessa. Como todo poeta não se identifica inteiramente com as ideias que encarna, assim Hemingway não está inteiro na crise da cultura que se acha por trás dele. Para além dos limites do behaviorismo, aquele reconhecer o homem em suas ações, em seu estar ou não à altura das tarefas que lhe são colocadas, é também um modo verdadeiro e justo de conceber a existência, que pode ser tornado próprio por uma humanidade mais concreta que aquela dos heróis hemingwaianos, cujas ações não são quase nunca um trabalho — a não ser um trabalho “excepcional” como o do pescador de tubarões —, ou uma tarefa precisa de luta. Das suas touradas, com toda a sua técnica, não sabemos o que fazer; mas a seriedade nítida e precisa com a qual suas personagens sabem acender um fogo ao ar livre, lançar uma linha de pesca, colocar uma metralhadora na posição justa, isso nos interessa e nos serve. Por aqueles momentos de perfeita integração do homem no mundo, nas coisas que faz, por aqueles momentos em que o homem se encontra em paz com a natureza mas lutando contra ela, em harmonia com a humanidade mesmo no fogo de uma batalha, podemos deixar de lado todo o Hemingway mais vistoso e celebrado. Se alguém conseguirá um dia escrever poeticamente sobre a relação do operário com sua máquina, com as operações precisas de seu trabalho, terá de retomar esses momentos hemingwaianos, retirando-os da moldura de futilidade turística ou de brutalidade ou de tédio, restituindo-os ao contexto orgânico do mundo produtivo moderno do qual Hemingway os retirou e isolou. Hemingway compreendeu alguma coisa sobre como se está no mundo de olhos abertos e enxutos, sem ilusões nem misticismos, como se está sozinho sem angústias e como se está acompanhado melhor que sozinho: e, sobretudo, elaborou um estilo que exprime de forma completa a sua concepção da vida, e que, se às vezes acusa os seus limites e vícios, pode em suas melhores produções (como nos contos de Nick) ser considerada a linguagem mais seca e imediata, a mais isenta de excessos e inchações, a mais limpidamente realista da prosa moderna. (Um crítico soviético, J. Kashkin, num belo ensaio que saiu num número de 1935 de International Literature e foi reproduzido no livro que documenta o simpósio organizado por John K. M. Mc Caffery Ernest Hemingway: the man and his work, The World Publishing Company, 1950, compara o estilo desses contos ao de Pushkin narrador.)
De fato, não existe nada mais distante de Hemingway que o simbolismo enfumaçado, o esoterismo com fundo religioso a qual pretende reconduzi-lo Carlos Baker no volume Hemingway, the writer as artist (Princeton University Press, 1952, recentemente traduzido em italiano por G. Ambrosoli para Guanda). Livro muito rico de informações, de citações de correspondências inéditas de Hemingway com o próprio Baker, com Fitzgerald e outros, e enriquecido com preciosas listas bibliográficas (que faltam na tradução) e que contém também singulares esclarecimentos úteis, como a relação polêmica — e não a adesão — de Hemingway com a lost generation em Fiesta, mas que é baseado em esquemas críticos rocambolescos, como a contraposição entre “casa” e “não casa”, entre “montanha” e “planície”, e fala de “simbologia cristã” a propósito de O velho e o mar.
Mais modesto e mais filologicamente sumário é um outro pequeno volume americano: Philip Young, Ernest Hemingway, Rinehart, 1952. Também Young, coitado, tem de se esforçar para demonstrar que Hemingway jamais foi comunista, que não é un-American, que até se pode ser rude e pessimista sem ser un-American. Mas reconheçamos a imagem do nosso Hemingway nas linhas gerais de sua impostação crítica, que atribui um valor fundamental aos contos da série Nick Adams, e os situa na tradição aberta por aquele livro maravilhoso — pela linguagem, pela plenitude realista e aventurosa, pelo sentido da natureza, pela adesão aos problemas sociais da época e do país — que é Huckleberry Finn de Mark Twain.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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