Eu conheci a mulher da sombrinha
vermelha, esposa do homem do guarda-chuva preto. Nunca soube quem
inventou esses nomes, mas nem mesmo sabia quem inventou a mim.
Sempre via-me como uma promessa em vias
de cumprir-se. A mulher não se afastava nunca da sombrinha
encarnada. Se aberta, meio tomate gigante, em gomos, flutuava.
Debaixo de seu tomate protetor do sol ou da chuva, ela provocava a
inveja na madrasta, eu suspeitava.
A mãe indicava, no quintal, a galinha
para o almoço. A mulher da sombrinha vermelha olhava e imobilizava a
ave pela força única de seu olhar. Indefeso, o animal permanecia
parado como se brincando de estátua. O olhar da mulher não ameaçava
como o olhar do pai. Um fazia ficar e o outro mandava partir. O homem
do guarda-chuva preto morreu de nó nas tripas. Ninguém usou de faca
para fatiá-lo e conferir. Era apenas uma suspeita.
Durante quatro estações, em todas as
manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade
de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro
avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar
num trem andando. Só que, o mundo, eu não sabia de onde vinha nem
para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi os companheiros para a
viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também
entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia
debaixo do banco — da segunda classe — sem incomodar.
Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo
inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o
incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o
destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e
reabastecia-se. O mundo só nos permite uma baldeação definitiva.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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