terça-feira, 17 de agosto de 2021

Baldeação definitiva

Eu conheci a mulher da sombrinha vermelha, esposa do homem do guarda-chuva preto. Nunca soube quem inventou esses nomes, mas nem mesmo sabia quem inventou a mim.
Sempre via-me como uma promessa em vias de cumprir-se. A mulher não se afastava nunca da sombrinha encarnada. Se aberta, meio tomate gigante, em gomos, flutuava. Debaixo de seu tomate protetor do sol ou da chuva, ela provocava a inveja na madrasta, eu suspeitava.
A mãe indicava, no quintal, a galinha para o almoço. A mulher da sombrinha vermelha olhava e imobilizava a ave pela força única de seu olhar. Indefeso, o animal permanecia parado como se brincando de estátua. O olhar da mulher não ameaçava como o olhar do pai. Um fazia ficar e o outro mandava partir. O homem do guarda-chuva preto morreu de nó nas tripas. Ninguém usou de faca para fatiá-lo e conferir. Era apenas uma suspeita.
Durante quatro estações, em todas as manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que, o mundo, eu não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi os companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco — da segunda classe — sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se. O mundo só nos permite uma baldeação definitiva.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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