“Pureza de coração é desejar uma só
coisa.” Foi assim que Kierkegaard definiu, a pureza. Puro é aquilo
em que não há misturas; é uma coisa só.
A paixão é pura porque vive de uma
coisa só: a imagem da pessoa amada. Não se trata de uma imagem mais
bonita que as outras. É uma única imagem que apaga todas as outras.
O apaixonado só pensa na pessoa amada. Sempre. Os assuntos que fazem
as conversas do cotidiano não lhe interessam. Bem que ele gostaria
de falar sobre o seu amor, mas se cala sabendo que ririam dele.
Camões, no episódio de Inês de Castro, escreveu que ela caminhava
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
Se não havia ouvidos humanos a quem
pudesse dizer o nome que tinha gravado no peito, que as árvores, a
relva e as pedras fossem depositárias do seu segredo – um único
nome.
A raposa pediu que o Pequeno Príncipe a
cativasse.
– Que quer dizer “cativar”? —
ele perguntou.
A raposa explicou:
– Tu te sentarás primeiro um pouco
longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu
não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, a
cada dia, te sentarás mais perto... Se tu vens, por exemplo, às
quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto
mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro
horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da
felicidade!
Aconteceu então que o Pequeno Príncipe
cativou a raposa. O tempo passou e chegou o dia em que ele precisou
partir. A raposa disse:
– Ah! Eu vou chorar.
– A culpa é tua; eu não te queria
fazer mal, mas tu quiseste que eu te cativasse...
– Quis — disse a raposa.
– Mas tu vais chorar!
– Vou — ela respondeu.
– Então, não sais lucrando nada!
– Eu lucro — disse ela — por
causa da cor do trigo. — E acrescentou: – Eu não como pão. O
trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa
alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. O trigo,
que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do
vento no trigo...
O amor começa quando colocamos uma
metáfora poética no rosto da pessoa amada. A paixão é uma
experiência estética. Está ligada à contemplação da beleza. A
pessoa pela qual se está apaixonado é bela. Não é que ela seja
bela – é o olhar apaixonado que a torna assim. Porque não vemos o
que vemos, vemos o que somos. Uma mulher é bela quando nos vemos
belos ao seu olhar. Quem, ao olhar para uma mulher, pensa em sexo não
é um apaixonado.
O apaixonado sorri ao contemplar a amada
dormindo, sem tocá-la. O corpo de lado, o rosto sobre o travesseiro,
os olhos fechados, o suave ressonar, a camisola suspensa deixando ver
a calcinha – é uma imagem de paz, de tranquilidade. E um momento
de ternura. Há um desejo de acariciá-la, mas a mão se contém;
nenhum movimento dele deverá interromper a beleza da cena. Nela, os
impulsos sexuais estão proibidos.
O sexo dos adolescentes e dos jovens se
parece com um furúnculo inchado – túrgido, vermelho, dolorido,
que busca se livrar do incômodo. O que se busca não é a
experiência amorosa, é rasgar o furúnculo para que o pus saia,
trazendo alívio. E o esperma não se parece com pus? Quando o
orgasmo acontece, numa mistura de dor e prazer, o furúnculo se
esvazia e o corpo fica em paz. Pode até ser que nesse momento o
parceiro se esqueça da mulher ao seu lado, vire as costas para ela e
durma.
Foi sobre esse sexo que Freud escreveu.
Era o único que ele conhecia. Era o sexo que Tomas, personagem de A
insustentável leveza do ser, fazia com suas namoradas. Mas uma delas
protestava: “não procuro o prazer, procuro a alegria...”.
O sexo-furúnculo prescinde da ternura.
Tomas não sentia ternura por suas amantes. Elas eram objetos para
seu alívio. Ele as usava. Não as amava. O amor mora no olhar terno
que sorri ao contemplar o rosto da pessoa amada.
Rubem Alves, in Cantos do pássaro encantado
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