terça-feira, 17 de agosto de 2021

A revolução humanista

 


O contrato moderno nos oferece poder, com a condição de que renunciemos a nossa crença num grande plano cósmico que dá significado à vida. Mas, quando examinado atentamente, encontra-se nele uma sorrateira cláusula de escape. Se de algum modo os humanos conseguirem encontrar um significado que não derive de um grande plano cósmico, isso não será considerado quebra de contrato.
Essa escapatória tem sido a salvação da sociedade moderna, pois é impossível manter ordem sem significado. O grande projeto político, artístico e religioso da modernidade consiste em encontrar um significado cujas raízes não estejam em algum grande plano cósmico. Não somos atores em um drama divino, e ninguém se importa conosco e com nossas ações, de maneira que ninguém estabelece limites ao nosso poder — mas, ainda assim, estamos convencidos de que a nossa vida tem significado.
A essa altura, em 2016, o gênero humano de fato está conseguindo equilibrar as duas coisas. Não só temos muito mais poder como também, contra todas as expectativas, a morte de Deus não nos levou a um colapso social. No decorrer da história, profetas e filósofos alegaram que, se os humanos deixassem de acreditar num grande plano cósmico, toda lei e toda ordem iriam desaparecer. Hoje, porém, quem representa a maior ameaça à lei e à ordem globais são exatamente aqueles que continuam a acreditar em Deus e em todos os Seus planos abrangentes. Uma Síria temente a Deus é um lugar muito mais violento do que os Países Baixos ateus.
Se não há planos cósmicos, e se não estamos comprometidos com nenhuma lei divina ou natural, o que é que evita o colapso social? Como é que se podem viajar milhares de quilômetros de Amsterdam a Bucareste ou de New Orleans a Montreal, sem ser abduzido por mercadores de escravos, emboscado por bandidos ou morto por tribos em conflito?

OLHE PARA DENTRO

O antídoto para uma existência sem sentido e sem lei foi fornecido pelo humanismo, um novo e revolucionário credo que conquistou o mundo nos séculos mais recentes. A religião humanista cultua a humanidade e espera que esta assuma na peça o papel que era de Deus no cristianismo e no islamismo e que cabia às leis da natureza no budismo e no taoismo. Enquanto, tradicionalmente, o grande plano cósmico emprestava um significado à vida humana, o humanismo inverte os papéis e espera que as experiências dos humanos deem significado ao grande cosmo. De acordo com o humanismo, os humanos devem extrair de suas experiências interiores não apenas o significado da própria vida, mas também o significado de todo o Universo. Este é o mandamento primário que o humanismo nos deu: criem um significado para um mundo sem significado.
Portanto, o cerne da revolução religiosa da modernidade não foi perder a fé em Deus, e sim adquirir fé na humanidade. Isso demandou séculos de trabalho árduo. Pensadores escreveram panfletos, artistas compuseram poemas e sinfonias, políticos fizeram acordos — e juntos eles convenceram a humanidade de que ela é capaz de imbuir o Universo de significado. Para captar a profundidade e as implicações da revolução humanista, considere como a cultura europeia moderna difere da cultura europeia medieval. As pessoas em Londres, Paris ou Toledo no ano de 1300 não acreditavam que os humanos pudessem determinar o que era o bem e o que era o mal; o que era correto e o que era errado; o que era bonito e o que era feio. Só Deus era capaz de criar e definir bondade, correção e beleza.
Embora se considerasse que os humanos usufruíam de aptidões e oportunidades únicas, eles também eram tidos como seres ignorantes e corruptíveis. Sem supervisão e orientação externas, jamais poderiam entender a verdade eterna e seriam arrastados a fugazes prazeres sensuais e ilusões terrenas. Além disso, os pensadores medievais ressaltavam que os humanos eram mortais, e suas opiniões e sentimentos tão instáveis como o vento. Hoje eu gosto de uma coisa, amanhã ela me desagrada e na semana que vem estou morto e enterrado. Por isso, todo significado que dependa da opinião humana é necessariamente frágil e efêmero. Verdades absolutas, e o significado da vida e do Universo, têm de se basear em alguma lei eterna emanada de alguma fonte sobre-humana.
Essa visão fez de Deus a fonte suprema não só de significado, como também de autoridade. Significado e autoridade andam sempre de mãos dadas. Quem quer que determine o significado de nossas ações — sejam elas boas ou más, corretas ou erradas, belas ou feias — ganha a autoridade para nos dizer o que pensar e como nos comportar.
O papel de Deus como fonte de significado e de autoridade não é somente uma teoria filosófica. Ele afetou cada faceta da vida cotidiana. Suponha que em 1300, em alguma cidadezinha inglesa, uma mulher casada se sinta atraída pelo vizinho e faça sexo com ele. Ao se esgueirar de volta para casa, escondendo um sorriso e ajeitando o vestido, sua mente dispara: “O que significa isso? Por que fiz isso? Foi bom ou ruim? O que implica isso no que diz respeito a mim? Faço novamente?”. Para responder a essas perguntas, supunha-se que a mulher deveria ir ao sacerdote local, se confessar e pedir orientação ao santo padre. O sacerdote era bem versado nas escrituras, e os textos sagrados lhe revelariam exatamente o que Deus pensava sobre o adultério. Com base na palavra eterna de Deus, o sacerdote poderia determinar, além de toda dúvida, que a mulher cometera um pecado mortal, que, se não se penitenciasse, acabaria no inferno e que tinha de se arrepender imediatamente, fazer uma doação de dez moedas de ouro para a próxima cruzada, não comer carne nos próximos seis meses e fazer uma peregrinação ao túmulo de são Thomas Becket em Canterbury. E nem é preciso lembrar que não poderia recair em seu terrível pecado.
Hoje tudo é muito diferente. Durante séculos, o humanismo tem nos convencido de que nós é que somos a fonte suprema de significado e que nosso livre-arbítrio é a mais alta de todas as autoridades. Em vez de esperar que alguma entidade exterior nos diga o que é o quê, somos capazes de nos basear em nossos sentimentos e desejos. Desde a infância somos bombardeados com uma barragem de slogans de aconselhamento: “Ouça sua voz interior, siga seu coração, seja verdadeiro consigo, confie em você mesmo, faça o que achar que é bom”. Jean-Jacques Rousseau resumiu tudo isso em seu romance Emílio, a bíblia do sentimento no século XVIII. Rousseau afirma que, ao buscar as regras de conduta na vida, ele as encontrou “nas profundezas de meu coração, traçadas pela natureza em caracteres que ninguém pode apagar. Só preciso consultar a mim mesmo a respeito do que quero fazer; o que sinto que é bom é bom, o que sinto que é ruim, é ruim”.
Assim, quando quer compreender o significado de um caso que esteja tendo, uma mulher moderna mostra-se muito menos propensa a aceitar cegamente o julgamento de um padre ou de um livro antiquado. Em vez disso, ela examinará seus sentimentos com cuidado. Se eles não estiverem muito claros, ela irá procurar uma amiga para tomar um café e abrir seu coração. Se as coisas ainda permanecerem vagas, ela irá ao terapeuta e lhe falará sobre isso. Teoricamente, o terapeuta moderno preenche o lugar que cabia ao sacerdote medieval, e já é um clichê surrado comparar as duas profissões. Mas, na prática, um enorme abismo os separa. O terapeuta não possui um livro sagrado que define o bem e o mal. Quando a mulher termina de contar sua história, é altamente improvável que ele exclame: “Sua perversa! Você cometeu um pecado terrível!”. Tampouco é provável que diga: “Maravilha! Que bom!”. Em vez disso, não importa o que ela tenha feito e dito, possivelmente o terapeuta irá perguntar com voz afetuosa: “Bem, e como você se sente em relação ao que aconteceu?”.
É verdade que a estante do terapeuta se verga sob o peso de Freud, Jung e o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM). Mas essas obras não são escrituras sagradas. ODSM diagnostica os transtornos da vida, não o seu significado. Para a maioria dos psicólogos, somente os sentimentos humanos são autorizados a determinar o verdadeiro significado de nossas ações. Daí que, não importa o que o terapeuta ache quanto ao caso de sua paciente nem o que Freud, Jung e o DSM pensem quanto aos casos em geral, o terapeuta não deve forçar a paciente a aceitar sua opinião. Em vez disso, deve ajudá-la a examinar os recônditos mais secretos de seu coração. Lá, e somente lá, ela encontrará as respostas. Enquanto os padres medievais tinham uma linha direta com Deus, e podiam fazer para nós uma distinção entre o bem e mal, os terapeutas modernos nos ajudam a entrar em contato com nossos sentimentos mais íntimos.
Isso explica parcialmente a cambiante sina da instituição do casamento. Na Idade Média, o casamento era considerado um sacramento ordenado por Deus, que também autorizava o pai a casar seus filhos de acordo com sua vontade e interesses. Um caso extraconjugal era, portanto, uma rebelião descarada contra a autoridade divina e a paterna. Era um pecado mortal, não importa o que os amantes sentissem e pensassem. Hoje as pessoas se casam por amor, e são seus sentimentos íntimos que valorizam essa ligação. Então, se os mesmos sentimentos que uma vez a atiraram nos braços de um homem agora a atiram nos braços de outro, o que há de errado nisso? Se um caso extraconjugal lhe permite extravasar desejos emocionais e sexuais que não são satisfeitos por seu cônjuge de vinte anos, e se seu amante é gentil, apaixonado e sensível a suas necessidades — por que não usufruir disso?
Mas espere um instante, podemos dizer. Não devemos ignorar os sentimentos das partes envolvidas. A mulher e seu amante podem se sentir maravilhosamente bem um nos braços do outro, porém, se os respectivos cônjuges descobrirem, todos vão se sentir terrivelmente mal por um bom tempo. E, se isso levar ao divórcio, seus filhos poderão carregar durante décadas as cicatrizes emocionais. Mesmo que o caso nunca seja descoberto, ocultá-lo envolve muita tensão e pode levar a sentimentos crescentes de alienação e ressentimento.
Os debates mais interessantes na ética humanística dizem respeito a situações como a dos casos extraconjugais, quando sentimentos humanos entram em colisão. O que acontece quando as mesmas ações fazem com que uma pessoa se sinta bem e outra se sinta mal? Como pesar esses sentimentos? Será que os sentimentos de satisfação dos dois amantes devem pesar mais do que os sentimentos negativos dos cônjuges e filhos?
Não importa o que você pensa quanto a essa questão específica. É muito mais importante compreender o tipo de argumento que os dois lados apresentam. As pessoas modernas têm ideias diferentes no que diz respeito a casos extraconjugais, mas, qualquer que seja sua posição, elas tendem a justificá-las em nome dos sentimentos humanos, e não no das escrituras sagradas e dos mandamentos divinos. O humanismo nos ensinou a pensar que algo só pode ser ruim se fizer com que alguém se sinta mal. O assassinato está errado não porque algum deus alguma vez disse: “Não matarás”. O assassinato está errado porque causa um sofrimento terrível à vítima, aos membros de sua família e a seus amigos e conhecidos. O roubo está errado não porque algum texto antigo diz: “Não roubarás”. E sim porque, quando alguém perde algo que possui, sente-se mal com isso. E, se uma ação não faz com que alguém se sinta mal, não deve haver nada de errado com ela. Se o mesmo texto antigo diz que Deus nos ordenou a não criar imagens nem de humanos nem de animais (Êxodo 20,4), mas eu sinto prazer em esculpir tais figuras, e não faço mal a ninguém nesse processo — o que isso poderia ter de errado?
A mesma lógica domina os debates atuais sobre homossexualidade. Se dois homens adultos apreciam ter relações sexuais um com o outro, e não machucam ninguém fazendo isso, por que deveria ser errado e por que fazê-lo é ilegal? É um assunto privado entre os dois homens, e eles são livres para decidir de acordo com seus sentimentos íntimos. Na Idade Média, se dois homens confessassem a um padre que estavam apaixonados, e que nunca tinham se sentido tão felizes, esses sentimentos tão bons para eles não teriam mudado o julgamento e a sentença de danação do padre — na verdade, a ausência de um sentimento de culpa teria piorado a situação ainda mais. Hoje, em contraste, se dois homens se amam, poderiam ouvir algo assim: “Se é bom para vocês, façam isso! Não permitam que nenhum padre confunda a mente de vocês. Apenas sigam seu coração. Vocês sabem melhor do que ninguém o que é bom para vocês”.
Hoje em dia mesmo os mais fanáticos religiosos adotam esse discurso humanístico quando querem influenciar a opinião pública, o que é bastante interessante. Por exemplo, durante a última década, todo ano a comunidade LGBT israelense realiza uma parada gay nas ruas de Jerusalém. É um dia singular de harmonia nessa cidade assolada por conflitos, porque é a única ocasião em que judeus, muçulmanos e cristãos religiosos têm uma causa comum — todos estão de acordo em sua fúria contra a parada gay. Realmente interessante, contudo, é o argumento utilizado. Eles não dizem: “Vocês não deveriam realizar uma parada gay porque Deus proíbe a homossexualidade”. O que fazem é explicar a cada microfone e câmera de televisão disponível que “ver uma parada gay desfilar pela cidade sagrada de Jerusalém fere nossos sentimentos. Assim como os gays querem que respeitemos seus sentimentos, eles deveriam respeitar os nossos”.
Em 7 de janeiro de 2015, fanáticos muçulmanos assassinaram vários membros da equipe da revista francesa Charlie Hebdo em virtude da publicação de caricaturas do profeta Maomé. Nos dias seguintes, muitas organizações muçulmanas condenaram o ataque, mas algumas não resistiram e acrescentaram uma ressalva. Por exemplo, o Sindicato de Jornalistas Egípcios denunciou os terroristas pelo uso da violência e no mesmo fôlego denunciou a revista por “ferir os sentimentos de milhões de muçulmanos no mundo todo”.2 Note-se que o sindicato não culpou a revista por desobedecer à vontade de Deus. É a isso que chamamos progresso.
Nossos sentimentos proveem significado não somente a nossas vidas privadas, mas também a processos sociais e políticos. Quando queremos saber quem deveria governar o país, que política exterior adotar e que medidas econômicas tomar, não procuramos as respostas nas escrituras, nem obedecemos às ordens do papa ou do Conselho de Laureados do Nobel. Na maioria dos países, realizamos eleições democráticas e perguntamos ao povo o que ele acha sobre o assunto em questão. Acreditamos que o eleitor é quem sabe as respostas e que a livre escolha de humanos individualmente constitui a autoridade política final.
Mas o eleitor saberá o que escolher? Ao menos teoricamente, supõe-se que ele consulte seus sentimentos mais íntimos e siga sua orientação. Isso nem sempre é fácil. Para entrar em contato com meus sentimentos, eu preciso filtrar e eliminar slogans vazios de propaganda, as mentiras intermináveis de políticos empedernidos, os ruídos que desviam a atenção criados por marqueteiros, além das opiniões criteriosas de gurus contratados. Preciso ignorar toda essa algazarra e só dar atenção a minha autêntica voz interior. E então minha autêntica voz interior sussurra em minha orelha: “Vote em Cameron”, ou “Vote em Modi”, ou “Vote em Clinton”, ou em quer que seja, e eu desenho uma cruz nesse nome na cédula eleitoral — e é assim que sabemos quem deveria governar o país.
Na Idade Média, isso seria considerado o cúmulo da tolice. Os sentimentos efêmeros do populacho ignorante dificilmente seriam um fundamento sensato para decisões políticas importantes. Quando a Inglaterra foi dilacerada pela Guerra das Rosas, ninguém pensou em acabar com o conflito realizando um referendo nacional, no qual cada caipira e cada meretriz iriam depositar seu voto em Lancaster ou em York. Da mesma forma, quando o papa Urbano II desencadeou a Primeira Cruzada, em 1095, ele não alegou que isso era a vontade do povo. Era a vontade de Deus. A autoridade política descendia do céu — e não se elevava dos corações e das mentes de humanos mortais.
O que vale para a ética e a política, vale também para a estética. Na Idade Média, a arte era governada por parâmetros objetivos. Os padrões de beleza não refletiam os modismos humanos. Pelo contrário, tinha-se que os gostos humanos deveriam se acomodar a ditames sobre-humanos. Isso fazia sentido perfeitamente num período em que as pessoas acreditavam que a arte era inspirada em forças sobre-humanas, e não em sentimentos humanos. Supunha-se que as mãos de pintores, poetas, compositores e arquitetos eram movidas por musas, anjos e o Espírito Santo. Muitas vezes, quando um compositor criava numa só penada um belo hino, não se dava crédito algum ao compositor pela mesma razão que não se dava à pena. A pena era mantida e dirigida pelos dedos humanos, que por sua vez eram mantidos e dirigidos pela mão de Deus.
Estudiosos medievais atinham-se a uma teoria grega clássica, segundo a qual a movimentação das estrelas cruzando o céu cria uma música celestial que permeia o Universo inteiro. Os humanos são física e mentalmente saudáveis quando os movimentos internos de seu corpo estão em harmonia com a música celestial criada pelas estrelas. A música humana, portanto, deveria ecoar a melodia divina do cosmo, e não refletir as ideias e os caprichos de compositores de carne e osso. Os mais belos hinos, canções e melodias eram em geral atribuídos não ao gênio de algum artista humano, mas à inspiração divina.

Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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