terça-feira, 6 de julho de 2021

Tina Modotti

Quando quero me lembrar de Tina Modotti tenho que fazer um esforço como se tratasse de recolher um punhado de névoa. Frágil, quase invisível, conheci-a ou não?
Era muito bonita ainda: um pálido rosto oval emoldurado por duas abas negras de cabelos presos, uns grandes olhos de veludo que continuam olhando através dos anos. Diego Rivera deixou sua figura num de seus murais, aureolada por coroamentos vegetais e espigas de milho.
Esta revolucionária italiana, grande artista da fotografia, chegou à União Soviética há tempo com o propósito de retratar multidões e monumentos. Mas ali, envolta pelo transbordante ritmo da criação socialista, atirou sua câmara ao rio Moscova e jurou a si mesma dedicar sua vida às mais humildes tarefas do partido comunista. Cumprindo este juramento, conheci-a no México e a senti morrer naquela noite.
Foi em 1941. Seu marido era Vittorio Vidale, o célebre Comandante Carlos do 52 Regimento. Tina Modotti morreu de um ataque do coração no táxi que a conduzia para casa. Ela sabia que seu coração andava mal mas não contava a ninguém para que não lhe limitassem o trabalho revolucionário. Estava sempre disposta para o que ninguém queria fazer: varrer os escritórios, ir a pé aos lugares mais afastados, passar as noites em claro escrevendo cartas ou traduzindo artigos. Na guerra espanhola foi enfermeira para os feridos da República.
Tinha tido um episódio trágico em sua vida quando era companheira do grande dirigente juvenil cubano, Julio Antonio Mella, exilado então no México. O tirano Gerardo Machado deu ordem de Havana para que uns pistoleiros matassem o líder revolucionário. Iam saindo do cinema certa tarde. Tina de braço dado com Mella, quando este caiu sob uma rajada de metralhadora. Rolaram juntos pelo chão, ela salpicada pelo sangue de seu companheiro morto enquanto os assassinos fugiam altamente protegidos. E para cúmulo os mesmos funcionários policiais que protegeram os criminosos pretenderam culpar Tina Modotti pelo assassinato.
Doze anos mais tarde se esgotaram silenciosamente as forças de Tina Modotti. A reação mexicana intentou reviver a infâmia cobrindo de escândalo sua própria morte como antes a tinham querido envolver na morte de Mella. Enquanto isso, Carlos e eu velávamos o pequeno cadáver. Ver sofrer um homem tão forte e tão valente não é um espetáculo agradável. Aquele leão sangrava ao receber na ferida o veneno corrosivo da infâmia que queria manchar Tina Modotti uma vez mais, já morta. O Comandante Carlos rugia com os olhos avermelhados, Tina estava como que de cera em seu pequeno ataúde de exilada e eu calava, impotente diante de toda a angústia humana reunida naquela sala.
Os jornais enchiam páginas inteiras de imundícies folhetinescas. Chamavam-na “a mulher misteriosa de Moscou”, acrescentando alguns: “Morreu porque sabia demais.” Impressionado pela furiosa dor de Carlos tomei uma decisão. Escrevi um poema desafiante contra os que ofendiam nossa morta, mandando-o a todos os jornais, sem esperança alguma de que o publicassem. Oh milagre! No dia seguinte, em vez das novas e fabulosas revelações prometidas na véspera, apareceu em todas as primeiras páginas meu indignado e desabrido poema.
O poema se intitulava “Tina Modotti matou”. Li-o naquela manhã no cemitério do México, onde deixamos seu corpo, que jaz para sempre sob uma pedra de granito mexicano. Sobre essa pedra estão gravadas minhas estrofes.
Nunca mais a imprensa voltou a escrever uma linha contra ela.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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