sexta-feira, 16 de julho de 2021

O mundo é uma alcachofra

A realidade do mundo se apresenta a nossos olhos múltipla, espinhosa, com estratos densamente sobrepostos. Como uma alcachofra. O que conta para nós na obra literária é a possibilidade de continuar a desfolhá-la como uma alcachofra infinita, descobrindo dimensões de leitura sempre novas. Por isso, sustentamos que dentre todos os autores importantes e brilhantes de quem se falou nestes dias talvez só Gadda mereça o nome de grande escritor.
La cognizione del dolore é aparentemente o livro mais sugestivo que se possa imaginar: quase o desabafo de um desespero sem objeto; mas na realidade é um livro cheio de significados objetivos e universais. Ao contrário, Quer pasticciaccio brutto de via Merulana é todo objetivo, um quadro do formigar da vida, mas é ao mesmo tempo um livro profundamente lírico, um autorretrato oculto entre as linhas de um desenho complicado, como em certos jogos para crianças em que se deve reconhecer a imagem da lebre ou do caçador no emaranhado de um bosque.
A respeito de La cognizione del dolore, Juan Petit disse hoje uma coisa muito justa: que o sentimento-chave do livro, a ambivalência ódio/amor pela mãe, pode ser entendido como ódio/ amor pelo próprio país e pelo próprio ambiente social. A analogia pode ir mais longe. Gonzalo, o protagonista, que vive isolado na vila que domina a aldeia, é o burguês que vê transtornado a paisagem de lugares e de valores que lhe era cara. O motivo obsessivo do medo dos ladrões exprime o sentido de alarme do conservador perante a incerteza dos tempos. Contra a ameaça dos ladrões toma forma a organização de um corpo de vigilância noturna que deveria devolver a segurança aos proprietários das vilas. Mas tal organização é tão desonesta, tão equívoca, que acaba constituindo para Gonzalo um problema mais grave que o medo dos ladrões. As referências simbólicas ao fascismo são contínuas, mas não são jamais tão precisas a ponto de congelar a narrativa numa leitura puramente alegórica e impedir outras possibilidades de interpretação.
(O serviço de vigilância deveria ser formado por ex-combatentes de guerra, mas Gadda põe continuamente em dúvida os seus decantados méritos patrióticos. Lembremos um dos núcleos fundamentais da obra de Gadda e não só desse livro: combatente da Primeira Guerra Mundial, o escritor vê nela o momento em que os valores amadurecidos no século XIX encontram a expressão mais alta, mas ao mesmo tempo o princípio do fim. Pode-se dizer que sente pela Primeira Guerra Mundial um amor ciumento e ao mesmo tempo o abalo de um choque do qual nem sua interioridade nem o mundo exterior poderão recuperar-se.)
A mãe quer contratar o serviço de vigilância, mas Gonzalo se opõe teimosamente a isso. Sobre uma divergência na aparência formal como essa, Gadda consegue provocar uma tensão atroz, de tragédia grega. A grandeza de Gadda está em romper a banalidade de uma anedota com relâmpagos de um inferno que é ao mesmo tempo psicológico, existencial, ético, histórico.
O final do romance, o fato de que a mãe tenha vencido contratando a vigilância noturna, que a vila seja saqueada — parece — pelos próprios guardas, e que no assalto dos profissionais a mãe perca a vida, poderia encerrar a narração no círculo fechado de um apólogo. Mas é compreensível que essa conclusão interessasse menos a Gadda do que a arquitetura de uma tremenda tensão, expressa por meio de todos os detalhes e divagações da narrativa.
Esbocei uma interpretação em chave histórica: gostaria de tentar uma interpretação em chave filosófica e científica. Homem de formação cultural positivista, diplomado em engenharia pelo Politécnico de Milão, apaixonado por problemáticas e terminologias das ciências exatas e das ciências naturais, Gadda vive o drama do nosso tempo também como drama do pensamento científico, da segurança racionalista e progressista oitocentista com a consciência da complexidade de um universo nem um pouco tranquilizante e fora de qualquer possibilidade de expressão. A cena central da Cognizione é uma visita do médico da aldeia a Gonzalo, um confronto entre uma afável imagem oitocentista da ciência e a trágica autoconsciência de Gonzalo, do qual é traçado um retrato fisiológico impiedoso e grotesco.
Em sua vastíssima obra publicada e inédita, formada em grande parte por textos de dez ou vinte páginas, dentre os quais se encontram alguns de seus melhores trabalhos, recordarei uma prosa escrita para rádio em que o engenheiro Gadda fala da construção moderna. Começa com a clássica compostura da prosa de Bacon ou de Galileu descrevendo como são construídas as casas modernas de cimento armado; sua exatidão técnica adquire sempre maior nervosismo e cor quando ele explica como as paredes das casas modernas não conseguem isolar o barulho; depois passa para o tratamento fisiológico de como os ruídos agem sobre o encéfalo e sobre o sistema nervoso; e termina numa pirotecnia verbal que exprime a exasperação do neurótico vítima dos rumores num grande edifício.
Creio que essa prosa representa plenamente o leque das possibilidades estilísticas de Gadda; não só, mas também o leque de suas implicações culturais, aquele arco-íris de posições filosóficas do racionalismo técnico-científico mais rigoroso até a descida nos abismos mais obscuros e sulfúreos.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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