A realidade do mundo se apresenta a
nossos olhos múltipla, espinhosa, com estratos densamente
sobrepostos. Como uma alcachofra. O que conta para nós na obra
literária é a possibilidade de continuar a desfolhá-la como uma
alcachofra infinita, descobrindo dimensões de leitura sempre novas.
Por isso, sustentamos que dentre todos os autores importantes e
brilhantes de quem se falou nestes dias talvez só Gadda mereça o
nome de grande escritor.
La cognizione del dolore é
aparentemente o livro mais sugestivo que se possa imaginar: quase o
desabafo de um desespero sem objeto; mas na realidade é um livro
cheio de significados objetivos e universais. Ao contrário, Quer
pasticciaccio brutto de via Merulana é todo objetivo, um quadro
do formigar da vida, mas é ao mesmo tempo um livro profundamente
lírico, um autorretrato oculto entre as linhas de um desenho
complicado, como em certos jogos para crianças em que se deve
reconhecer a imagem da lebre ou do caçador no emaranhado de um
bosque.
A respeito de La cognizione del
dolore, Juan Petit disse hoje uma coisa muito justa: que o
sentimento-chave do livro, a ambivalência ódio/amor pela mãe, pode
ser entendido como ódio/ amor pelo próprio país e pelo próprio
ambiente social. A analogia pode ir mais longe. Gonzalo, o
protagonista, que vive isolado na vila que domina a aldeia, é o
burguês que vê transtornado a paisagem de lugares e de valores que
lhe era cara. O motivo obsessivo do medo dos ladrões exprime o
sentido de alarme do conservador perante a incerteza dos tempos.
Contra a ameaça dos ladrões toma forma a organização de um corpo
de vigilância noturna que deveria devolver a segurança aos
proprietários das vilas. Mas tal organização é tão desonesta,
tão equívoca, que acaba constituindo para Gonzalo um problema mais
grave que o medo dos ladrões. As referências simbólicas ao
fascismo são contínuas, mas não são jamais tão precisas a ponto
de congelar a narrativa numa leitura puramente alegórica e impedir
outras possibilidades de interpretação.
(O serviço de vigilância deveria ser
formado por ex-combatentes de guerra, mas Gadda põe continuamente em
dúvida os seus decantados méritos patrióticos. Lembremos um dos
núcleos fundamentais da obra de Gadda e não só desse livro:
combatente da Primeira Guerra Mundial, o escritor vê nela o momento
em que os valores amadurecidos no século XIX encontram a expressão
mais alta, mas ao mesmo tempo o princípio do fim. Pode-se dizer que
sente pela Primeira Guerra Mundial um amor ciumento e ao mesmo tempo
o abalo de um choque do qual nem sua interioridade nem o mundo
exterior poderão recuperar-se.)
A mãe quer contratar o serviço de
vigilância, mas Gonzalo se opõe teimosamente a isso. Sobre uma
divergência na aparência formal como essa, Gadda consegue provocar
uma tensão atroz, de tragédia grega. A grandeza de Gadda está em
romper a banalidade de uma anedota com relâmpagos de um inferno que
é ao mesmo tempo psicológico, existencial, ético, histórico.
O final do romance, o fato de que a mãe
tenha vencido contratando a vigilância noturna, que a vila seja
saqueada — parece — pelos próprios guardas, e que no assalto dos
profissionais a mãe perca a vida, poderia encerrar a narração no
círculo fechado de um apólogo. Mas é compreensível que essa
conclusão interessasse menos a Gadda do que a arquitetura de uma
tremenda tensão, expressa por meio de todos os detalhes e divagações
da narrativa.
Esbocei uma interpretação em chave
histórica: gostaria de tentar uma interpretação em chave
filosófica e científica. Homem de formação cultural positivista,
diplomado em engenharia pelo Politécnico de Milão, apaixonado por
problemáticas e terminologias das ciências exatas e das ciências
naturais, Gadda vive o drama do nosso tempo também como drama do
pensamento científico, da segurança racionalista e progressista
oitocentista com a consciência da complexidade de um universo nem um
pouco tranquilizante e fora de qualquer possibilidade de expressão.
A cena central da Cognizione é uma visita do médico da
aldeia a Gonzalo, um confronto entre uma afável imagem oitocentista
da ciência e a trágica autoconsciência de Gonzalo, do qual é
traçado um retrato fisiológico impiedoso e grotesco.
Em sua vastíssima obra publicada e
inédita, formada em grande parte por textos de dez ou vinte páginas,
dentre os quais se encontram alguns de seus melhores trabalhos,
recordarei uma prosa escrita para rádio em que o engenheiro Gadda
fala da construção moderna. Começa com a clássica compostura da
prosa de Bacon ou de Galileu descrevendo como são construídas as
casas modernas de cimento armado; sua exatidão técnica adquire
sempre maior nervosismo e cor quando ele explica como as paredes das
casas modernas não conseguem isolar o barulho; depois passa para o
tratamento fisiológico de como os ruídos agem sobre o encéfalo e
sobre o sistema nervoso; e termina numa pirotecnia verbal que exprime
a exasperação do neurótico vítima dos rumores num grande
edifício.
Creio que essa prosa representa
plenamente o leque das possibilidades estilísticas de Gadda; não
só, mas também o leque de suas implicações culturais, aquele
arco-íris de posições filosóficas do racionalismo
técnico-científico mais rigoroso até a descida nos abismos mais
obscuros e sulfúreos.
Italo Calvino, in Por que ler os clássicos
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