Frame do filme Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos
Fabiano,
Sinha Vitória e os meninos iam à festa de Natal na cidade. Eram
três horas, fazia grande calor, redemoinhos espalhavam por cima das
árvores amarelas nuvens de poeira e folhas secas.
Tinham
fechado a casa, atravessado o pátio, descido a ladeira, e pezunhavam
nos seixos como bois doentes dos cascos. Fabiano, apertado na roupa
de brim branco feita por Sinha Terta, com chapéu de beata,
colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico, procurava erguer
o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinha Vitória,
enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos
sapatos de salto enorme. Teimava em calçar-se como as moças da rua
– e dava topadas no caminho. Os meninos estreavam calça e paletó.
Em casa sempre usavam camisinhas
de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de
pano branco na loja e incumbira Sinha Terta de arranjar farpelas para
ele e para os filhos. Sinha Terta achara pouca a fazenda, e Fabiano
se mostrara desentendido, certo de que a velha pretendia furtar-lhe
os retalhos. Em consequência
as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de emendas.
Fabiano
tentava não perceber essas desvantagens. Marchava direito, a barriga
para fora, as costas aprumadas, olhando a serra distante. De
ordinário olhava o chão, evitando as pedras, os tocos, os buracos e
as cobras. A posição forçada cansou-o. E ao pisar a areia do rio,
notou que assim não poderia vencer as três léguas que o separavam
da cidade. Descalçou-se, meteu as meias no bolso, tirou o paletó, a
gravata e o colarinho, roncou aliviado. Sinha Vitória decidiu
imitá-lo: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou no lenço. Os
meninos puseram as chinelinhas debaixo do braço e sentiram-se à
vontade.
A
cachorra Baleia, que vinha atrás, incorporou-se ao grupo. Se ela
tivesse chegado antes provavelmente Fabiano a teria enxotado. E
Baleia passaria a festa junto às cabras que sujavam o copiar. Mas
com a gravata e o colarinho machucados no bolso, o paletó no ombro e
as botinas enfiadas num pau, o vaqueiro achou-se perto dela e
acolheu-a.
Retomou
a posição natural: andou cambaio, a cabeça inclinada. Sinha
Vitória, os dois meninos e Baleia acompanharam-no. A tarde foi
comida facilmente e ao cair da noite estavam na beira do riacho, à
entrada da rua.
Aí
Fabiano parou, sentou-se, lavou os pés duros, procurando retirar das
gretas fundas o barro que lá havia. Sem se enxugar, tentou calçar-se
– e foi uma dificuldade: os calcanhares das meias de algodão
formaram bolos nos peitos dos pés e as botinas de vaqueta resistiram
como virgens. Sinha Vitória levantou a saia, sentou-se no chão e
limpou-se também. Os dois meninos entraram no riacho, esfregaram os
pés, saíram, calçaram as chinelinhas e ficaram espiando os
movimentos dos pais. Sinha Vitória aprontava-se e erguia-se, mas
Fabiano soprava arreliado. Tinha vencido a obstinação de uma
daquelas amaldiçoadas botinas; a outra emperrava, e ele, com os
dedos nas alças, fazia esforços inúteis. Sinha Vitória dava
palpites que irritavam o marido. Não havia meio de introduzir o
diabo do calcanhar no tacão. A um arranco mais forte, a alça de
trás rebentou-se, e o vaqueiro meteu as mãos pela borracha,
energicamente. Nada conseguindo, levantou-se resolvido a entrar na
rua assim mesmo, coxeando, uma perna mais comprida que a outra. Com
raiva excessiva, a que se misturava alguma esperança, deu uma patada
violenta no chão. A carne comprimiu-se, os ossos estalaram, a meia
molhada rasgou-se e o pé amarrotado se encaixou entre as paredes de
vaqueta. Fabiano soltou um suspiro largo de satisfação e dor. Em
seguida tentou prender o colarinho duro ao pescoço, mas os dedos
trêmulos não realizaram a tarefa. Sinha Vitória auxiliou-o: o
botão entrou na casa estreita e a gravata amarrou-se. As mãos
sujas, suadas, deixaram no colarinho manchas escuras.
–
Está
certo, grunhiu Fabiano.
Atravessaram
a pinguela e alcançaram a vila.
Sinha Vitória caminhava aos tombos, por causa dos saltos dos
sapatos, e conservava o guarda-chuva suspenso, com o castão para
baixo e a biqueira para cima, enrolada no lenço. Impossível dizer
porque Sinha Vitória levava o guarda-chuva com biqueira para cima e
o castão para baixo. Ela própria não saberia explicar-se, mas
sempre vira as outras matutas procederem assim e adotava o costume.
Fabiano
marchava teso. Os dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam
casos extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por
isso pisavam devagar, receando chamar a atenção das pessoas.
Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos
maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. Como
podia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os, homens iriam
brigar. Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles
andassem entre as barracas? Estavam acostumados a aguentar
cascudos e puxões de orelhas. Talvez as criaturas desconhecidas não
se comportassem como Sinha Vitória, mas os pequenos retraíam-se,
encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de
rumores estranhos.
Chegaram
à igreja, entraram. Baleia ficou passeando na calçada, olhando a
rua, inquieta. Na opinião dela, tudo devia estar no escuro, porque
era noite, e a gente que andava no quadro precisava deitar-se.
Levantou o focinho, sentiu um cheiro que lhe deu vontade de tossir.
Gritavam demais ali perto e havia luzes em abundância, mas o que a
incomodava era aquele cheiro de fumaça.
Os
meninos também se espantavam. No mundo, subitamente alargado, viam
Fabiano e Sinha Vitória muito reduzidos, menores que as figuras dos
altares. Não conheciam altares, mas presumiam que aqueles objetos
deviam ser preciosos. As luzes e os cantos extasiavam-nos. De luz
havia, na fazenda, o fogo entre as pedras da cozinha e o candeeiro de
querosene pendurado pela asa numa vara que saía da taipa; de canto,
o bendito
de Sinha Vitória e o aboio de Fabiano. O aboio era triste, uma
cantiga monótona e sem palavras que entorpecia o gado. Fabiano
estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas, constrangido
na roupa nova, o pescoço esticado, pisando, em brasas. A multidão
apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. De perneiras, gibão e
guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no
lombo de um bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos
e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da
noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia
muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos e os
braços da multidão fossem agarrá-lo,
subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em
redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam,
mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em
questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se inutilmente
por abanar-se com o chapéu. Difícil mover-se, estava amarrado.
Lentamente conseguiu abrir caminho no povaréu, esgueirou-se até
junto da pia de água benta, onde se deteve, receoso de perder de
vista a mulher e os filhos. Ergueu-se nas pontas dos pés, mas isto
lhe arrancou um grunhido: os calcanhares esfolados começavam a
afligi-lo. Distinguiu o cocó de Sinha Vitória, que se escondia
atrás de uma coluna. Provavelmente os meninos estavam com ela. A
igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeça da mulher,
Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. E o colarinho
furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram indispensáveis.
Não poderia assistir à novena calçado em alpercatas, a camisa de
algodão aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como
tinha religião, entrava na igreja uma vez por ano.
E
sempre vira, desde que se entendera, roupas de festa assim: calça e
paletó engomados, batinas de elástico, chapéu de baeta, colarinho
e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a tradição, embora
sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava aprumar-se. Mas a
disposição esmorecia: o espinhaço vergava, naturalmente, os braços
mexiam-se desengonçados.
Comparando-se
aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso
desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e
evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer
coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O
patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da
última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de
números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o
escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam
prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário
tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam
vendo-o passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava
daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por Sinha
Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o chapéu de baeta o
tornavam ridículo, mas não queria pensar nisto.
–
Preguiçosos,
ladrões, faladores, mofinos.
Estava
convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. Mordeu os
beiços. Não poderia dizer semelhante coisa. Por falta menor
aguentara
facão e dormira na cadeia. Ora, o soldado amarelo... Sacudiu a
cabeça, livrou-se da recordação desagradável e procurou uma cara
amiga na multidão. Se encontrasse um conhecido, iria chamá-lo para
a calçada, abraçá-lo, sorrir, bater palmas. Depois falaria sobre
gado. Estremeceu, tentou ver o cocó de Sinha Vitória. Precisava ter
cuidado para não se distanciar da mulher e dos filhos. Aproximou-se
deles, alcançou-os no momento em que a igreja começava a
esvaziar-se. Estava convencido de que todos os habitantes da cidade
eram ruins. Mordeu os beiços. Não poderia dizer semelhante coisa.
Por falta menor aguentara
facão e dormira na cadeia. Ora, o soldado amarelo... Sacudiu a
cabeça, livrou-se da recordação desagradável e procurou uma cara
amiga na multidão. Se encontrasse um conhecido, iria chamá-lo para
a calçada, abraçá-lo, sorrir, bater palmas. Depois falaria sobre
gado. Estremeceu, tentou ver o cocó de Sinha Vitória. Precisava ter
cuidado para não se distanciar da mulher e dos filhos. Aproximou-se
deles, alcançou-os no momento em que a igreja começava a
esvaziar-se.
Saíram
aos encontrões, desceram os degraus. Empurrado, machucado, Fabiano
tornou a pensar no soldado amarelo. No quadro, ao passar pelo jatobá,
- virou o rosto. Sem motivo nenhum, o desgraçado tinha ido
provocá-lo, pisar-lhe o pé. Ele se desviara, com bons modos. Como o
outro insistisse, perdera a paciência, tivera um rompante.
Consequência:
facão no lombo e uma noite de cadeia.
Convidou
a mulher e os filhos para os cavalinhos, arrumou-os, distraiu-se um
pouco vendo-os rodar. Em seguida encaminhou-os as barracas de jogo.
Coçou-se, puxou o lenço, desatou-o, contou o dinheiro, com a
tentação de arriscá-lo no bozó. Se fosse feliz, poderia comprar a
cama de couro cru, a sonho de Sinha Vitória. Foi beber cachaça numa
tolda, voltou, pôs-se a rondar indeciso, pedindo com os olhos a
opinião da mulher. Sinha Vitória fez um gesto de reprovação, e
Fabiano retirou-se, lembrando-se do jogo que tivera em casa de seu
Inácio, com o soldado amarelo. Fora roubado, com certeza fora
roubado. Avizinhou-se da tolda e bebeu mais cachaça. Pouca a pouco
ficou sem-vergonha.
– Festa
é festa.
Bebeu
ainda uma vez e empertigou-se, olhou as pessoas desafiando-as. Estava
resolvido a fazer uma asneira. Se topasse o soldado amarelo,
esbodegava-se com ele. Andou entre as barracas, emproado, atirando
coices no chão, insensível às esfoladuras dos pés. Queria era
desgraçar-se, dar um pano de amostra àquele safado. Não ligava
importância à mulher e aos filhos, que o seguiam.
– Apareça
um homem! berrou.
No
barulho que enchia a praça ninguém notou a provocação. E Fabiano
foi esconder-se por detrás das barracas, para lá dos tabuleiros de
doces. Estava disposto a esbagaçar-se, mas havia nele um resto de
prudência. Ali podia irritar-se, dirigir ameaças e desaforos a
inimigos invisíveis. Impelido por forças acautelava-se. Sabia que
aquela explosão era perigosa, temia que o soldado amarelo surgisse
de repente, viesse plantar-lhe no pé a reiúna. O soldado amarelo,
falto de substância, ganhava fumaça na companhia dos parceiros. Era
bom evitá-lo. Mas a lembrança dele tornava-se às vezes horrível.
E Fabiano estava tirando uma desforra. Estimulado pela cachaça,
fortalecia-se: – Cadê o valente? Quem é que tem coragem de dizer
que eu sou feio? Apareça um homem.
Lançava
o desafio numa fala atrapalhada, com o vago receio de ser ouvido.
Ninguém apareceu. E Fabiano roncou alto, gritou que eram todos uns
frouxos, uns capados, sim senhor. Depois de muitos berros, supôs que
havia ali perto homens escondidos, com medo dele. Insultou-os: –
Cambada de...
Parou
agoniado, suando frio, a boca cheia de água, sem atinar com a
palavra. Cambada de quê? Tinha o nome debaixo da língua., E a
língua engrossava, perra, Fabiano cuspia, fixava na mulher e nos
filhos uns olhos vidrados. Recuou alguns passos, entrou a engulhar.
Em seguida aproximou-se novamente
das luzes, capengando, foi sentar-se na calçada de uma loja. Betava
desanimado, bambo; o entusiasmo arrefecera. Cambada de que? Repetia a
pergunta sem saber o que procurava. Olhou de perto a cara da mulher,
não conseguiu distinguir-lhe os traços. Sinha Vitória perceberia a
atrapalhação dele?
Havia
ali outros matutos conversando, e Fabiano enjoou-os. Se não
estivesse tão ansiado, arrotando, suando, brigaria com eles. A
interrogação que lhe aperreava o espírito confuso juntou-se a
ideia
de que aquelas pessoas não tinham o direito de sentar-se na calçada.
Queria que o deixassem com a mulher, os filhos e a cachorrinha.
Cambada de quê? Soltou um grito áspero, bateu palmas: – Cambada
de cachorros.
Descoberta
a expressão teimosa, alegrou-se. Cambada de cachorros. Evidentemente
os matutos como ele não passavam de cachorros. Procurou com as mãos
a mulher e os filhos, certificou-se de que eles estavam acomodados.
Uma contração violenta no pescoço entortou-lhe o rosto, a boca
encheu-se novamente de saliva. Pôs-se a cuspir. Serenou, respirou
com força, passou os dedos por um fio de baba que lhe pendia de
beiço. Estava era tonto, com uma zoada infeliz nos ouvidos. Ia jurar
que mostrara valentia e correra perigo. Achava ao mesmo tempo que
havia cometido uma falta. Agora estava pesado e com sono. Enquanto
andara fazendo espalhafato, a cabeça cheia de aguardente, desprezara
as esfoladuras dos pés. Mas esfriava, e as botinas de vaqueta
magoavam-nos em demasia. Arrancou-as, tirou as meias, libertou-se do
colarinho, da gravata e do paletó, enrolou tudo, fez um travesseiro,
estirou-se no cimento, puxou para os olhos o chapéu de baeta. E
adormeceu, com o estômago embrulhado. Sinha Vitória achava-se em
dificuldade: torcia-se para satisfazer uma precisão e não sabia
como se desembaraçar. Podia esconder-se no fundo do quadro, por
detrás das barracas, para lá dos tamboretes das doceiras. Ergueu-se
meio decidida, tornou a acocorar-se. Abandonar os meninos, o marido
naquele estado? Apertou-se e observou os quatro cantos com desespero,
que a precisão era grande. Escapuliu-se disfarçadamente, chegou a
esquina da loja, onde havia um magote de mulheres agachadas. E,
olhando as frontarias das casas e as lanternas de papel, molhou o
chão e os pés das outras matutas. Arrastou-se para junto da
família, tirou do bolso o cachimbo de barro, atochou-o, acendeu-o,
largou algumas baforadas longas de satisfação. Livre da
necessidade, viu com interesse o formigueiro que circulava na praça,
a mesa do leilão, as listas luminosas dos foguetes. Realmente a vida
não era má. Pensou com um arrepio na seca, na viagem medonha que
fizera em caminhos abrasados, vendo ossos e garranchos. Afastou a
lembrança ruim, atentou naquelas belezas. O burburinho da multidão
era doce, o realejo fanhoso dos cavalinhos não descansava. Para a
vida ser boa, só faltava à Sinha Vitória uma cama igual à de seu
Tomás da bolandeira. Suspirou, pensando na cama de varas em que
dormia. Ficou ali de cócoras, cachimbando, os olhos e os ouvidos
muito abertos para não perder a festa. Os meninos trocavam
impressões cochichando, aflitos com o desaparecimento da cachorra.
Puxaram a manga da mãe. Que fim teria levado Baleia? Sinha Vitória
levantou o braço num gesto mole e indicou vagamente dois pontos
cardeais com o canudo do cachimbo. Os pequenos insistiram. Onde
estaria a cachorrinha? Indiferentes à igreja, às lanternas de
papel, aos bazares, às mesas de jogo e aos foguetes, só se
importavam com as pernas dos transeuntes. Coitadinha, andava por aí
perdida aguentando
pontapés.
De
repente Baleia apareceu. Trepou-se na calçada, mergulhou entre as
saias das mulheres, passou por cima de Fabiano e chegou-se aos
amigos, manifestando com a língua e com o rabo um vivo
contentamento. O menino mais velho agarrou-a. Estava segura. Tentaram
explicar-lhe que tinham tido susto enorme por causa dela, mas Baleia
não ligou importância à explicação. Achava é que perdiam tempo
num lugar esquisito, cheio de odores desconhecidos. Quis latir,
expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria
ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos
seus donos.
A
opinião dos meninos assemelhava-se à dela. Agora olhavam as lojas,
as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham
percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir
uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as
surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas
juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a
timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O
menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as
moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido
feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito soprou-a no
ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino
mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as
preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras
das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada.
Como
podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém
conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as
coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por
gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência.
Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo
para não desencadear as forças estranhas que elas porventura
encerrassem.
Baleia
cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e franzia o
focinho. A cidade se enchera de suores que a desconcertavam.
Sinha
Vitória enxergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da
bolandeira, uma cama de verdade.
Fabiano
roncava de papo para cima, as abas do chapéu cobrindo-lhe os olhos,
o quengo sobre as botinas de vaqueta. Sonhava, agoniado, e Baleia
percebia nele um cheiro que o tornava irreconhecível. Fabiano se
agitava, soprando. M Muitos soldados amarelos tinham aparecido,
pisavam-lhe os pés com enormes reiúnas e ameaçavam-no com facões
terríveis.
Graciliano Ramos, in Vidas Secas
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