quinta-feira, 15 de julho de 2021

A escada que leva ao inferno

 


Minha filha apareceu aqui em casa com um bando de amiguinhas, a meu pedido. Todas andam pelos 13, 14 anos. Era minha intenção conversar com elas, saber a quantas andam essas meninas hoje em dia, no início dos anos 1970.
Talvez o fato de ser pai de uma delas as constrangesse um pouco, ou a mim mesmo – o certo é que eu não soube muito bem o que perguntar, e acabamos conversando generalidades.
Pude apurar que continuam considerando O pequeno príncipe o melhor livro que já leram. Não leram muitos: uma citou Fernão Capelo Gaivota, outra citou Jane Eyre, nenhuma citou os livros da coleção “Menina-moça” do gênero Poliana. Em matéria de música, continuam todas gostando dos Beatles. Preferem Chico a Caetano. Sabem quem é o presidente dos Estados Unidos, mas não têm senão uma vaga ideia de quem seja Fidel Castro, nem o que é comunismo. Conhecem e empregam com candura os maiores palavrões existentes, para pontuar a conversa. Algumas já fumam, mas estão tentando parar. Em matéria de bebida, continuam grandes consumidoras de Coca-Cola (uma delas me perguntou se tinha cerveja. Não tinha). Quando me referi a namorados, limitaram-se a mencionar uns meninos chamados Dudu, Caco, Dida e outros apelidos assim: todos surfistas, “o maior barato”.
O assunto não foi longe. O interesse delas me pareceu inconstante e difuso: falam ao mesmo tempo, se agitam, riem muito, acham graça em tudo. Estão naquela fase em que deixaram ontem de ser crianças e ingressam desprevenidas na puberdade, para mergulhar em breve nas águas escuras da adolescência. Não admiram os hippies: para elas são pessoas que escolheram viver à toa, mas à custa dos outros. Veem televisão por desfastio, não se entusiasmam pelas novelas nem pelos atores. Não leem nem jornais nem revistas. Não ligam para futebol nem nenhum esporte. Na verdade não ligam para nada. Estão na delas – não se cansam de repetir.
Não fiquei sabendo qual era exatamente a delas, e acabei eu próprio dizendo qual era a minha – entre outras coisas condenando o cigarro como o pior dos vícios, enquanto fumava um atrás do outro. Depois que saíram, fiquei pensando que talvez a precocidade delas venha a ser apenas aparente: estão exercendo inocentemente a sua meninice, até chegar a hora da verdade – a de enfrentar como mulheres o que a vida lhes reserva. E seja qual for o mundo de erros, confusão e violência que as espera, certamente conseguirão sobreviver.
Estava eu nesta ilusão, quando no dia seguinte... Parece até ter sido de encomenda: cinco meninas da mesma idade e da mesma classe social, alunas de um colégio, vieram me entrevistar, a mando de sua professora. Eu é que acabei por entrevistá-las – e apesar da naturalidade que procurei simular o tempo todo, fui passando aos sobressaltos, surpresa em surpresa, da simples curiosidade ao extremo estarrecimento. Acabei em estado de choque.
Não que eu seja assim tão careta, como elas próprias fizeram questão de admitir. Até que sou legal – segundo a condescendente opinião de uma delas. Exatamente a que me chamou de biriteiro quando me viu tomando uísque e perguntou, com a maior naturalidade, se eu não descolava um baseado para elas.
Baseado, para os não iniciados: maconha.
É isso aí: todas elas fumavam maconha.
Não éramos inocentes no nosso tempo, como muitos sustentam hoje em dia – e até acreditam estar falando a verdade. Se esquecem dos tremendos porres de gim, cachaça, ou o que quer que contivesse álcool, tomado às escondidas, às vezes no gargalo. E mais: havia quem gostasse de dissolver no cuba-libre, que era a bebida da moda, certo medicamento caseiro, afirmando que isso provocava (nunca cheguei a experimentar) a sensação a que hoje chamam de barato. E mais: pílula para ficar acordado – e nem sempre para estudar às vésperas de exame: de pura farra. Mas o nosso barato mesmo era curtido no Carnaval com o lança-perfume – e havia quem guardasse uma reserva para o ano inteiro.
Só que passamos por tudo isso aos 18 anos; éramos rapazes, tontos de mocidade, queríamos abraçar o mundo com as pernas e experimentar de tudo, por mera curiosidade. Nenhum de nós, ao que eu saiba, se tornou viciado – a não ser, é lógico, o famigerado cigarro com que preparo hoje o câncer de amanhã – e os poucos que fizeram do álcool um inimigo.
Ao passo que essas meninas de hoje – e são meninas! – se iniciam na maconha aos 13 anos. É possível que nisso também sejam precoces, como em tudo mais: passam por essa fase só de curiosidade, em breve estarão noutra – como as que me visitaram na véspera.
Seria bom acreditar que assim seja – se fosse só isso.
Uma das meninas, a mais viva e inteligente, guriazinha de cabelos longos e corpo ainda de criança apesar da puberdade já manifesta, me disse a certa altura que hoje está só “no fumo”: abandonou “todo o resto”.
Resto? Que resto?
Ela foi desenrolando a sua história, a cada pergunta minha. Viciou-se em maconha aos 11 anos: puxava fumo o dia inteiro. (Hoje só consome dois cigarros por dia.) A própria mãe a iniciou: fumava na vista da filha, juntamente com o pai e as visitas; largava os cigarros de maconha por todo lado, propositadamente, como por esquecimento, para que ela experimentasse. Quando a mãe a viu fumando, lhe disse que era isso mesmo, maconha não tinha importância: só não cheirasse pó (a tia é viciada em cocaína), “a não ser depois dos trinta anos, quando a mulher já não tem mais nada a esperar da vida”. Até que um dia a tia a iniciou também nesse vício. O primo (17 anos) se encarregava de arranjar a droga, que mais tarde ela própria passou a obter “com a turma da praça”. Da última vez pagou 300 cruzeiros por duas gramas. E onde arranjava dinheiro? Ela riu: na carteira do pai, na bolsa da mãe – “descolava pelo menos quinhentos de cada vez”. Que pais eram esses, que não davam por falta de quantias tão grandes? Sim, eles são ricos, mas estão se psicanalisando – em sua casa o dinheiro vai todo para os analistas. Ela própria tem o seu. E cruzou as pernas que a minissaia deixava à mostra, atirando os cabelos por sobre os ombros com as costas das mãos, num gesto a um tempo coquete e nervoso, incontidamente repetido como o sestro dos viciados:
Mas eu acho que consegui parar em tempo.
Corri os olhos pelas outras, que ouviam nossa conversa com naturalidade:
E vocês?
Sim, também já haviam experimentado. Passei adiante: e LSD? Uma delas me disse que tomou ácido pela primeira vez com o namorado, um menino de 17 anos. Outra disse que uma amiga trouxe para ela do Peru. Outra ainda conseguira “de um cara que fornece fumo para nós” (de graça da primeira vez, através de um menino por ele aliciado e que acabara também traficante). Elas próprias conheciam várias bocas de fumo e vendedores de pó, sabiam obter diretamente.
Eu ouvia tudo aquilo como se estivesse sonhando: parecia uma conversa inocente de crianças, falavam de drogas e entorpecentes como sobre doces e sorvetes. Quem sabe o inocente era eu? Quer dizer que todo mundo aceita isso, ninguém mais se espanta? Nem mesmo a ilegalidade que praticavam as assustava? E o risco que corriam? Elas riram, como se eu estivesse falando um absurdo. Pois não seria eu que haveria de denunciá-las, ficassem tranquilas: fiz mesmo questão de não lhes perguntar os nomes, nem onde moravam, nem de que colégio eram. Limitei-me a continuar descendo um a um os degraus da escada que leva ao inferno: bolinhas? Só de vez em quando. Uma disse que tem uma irmã de 18 anos que está tomando quarenta por dia: já não fala direito, baba o tempo todo, tem os movimentos descoordenados. Outra disse que guarda em casa um monte de receitas. Arrisquei ainda mais, usando a linguagem delas: e pico? Não, ainda não experimentaram. Mas o tal primo de 17 anos está com os dois braços inutilizados, agora tem que tomar picadas nas veias do pé. Uma menina conhecida delas, em vez de heroína, injeta na veia bolinha dissolvida.
A esta altura eu estava tonto – quem parecia drogado era eu. Desviei a conversa para assuntos mais amenos: o amor, por exemplo. Elas tinham namorado? Pretendiam se casar com eles?
Bem, casar, propriamente, não: morar junto, talvez. Experimentando antes, é claro. Eu já esperava por tudo, mas não pelo que uma delas acrescentou – justamente a que foi iniciada na maconha pela mãe:
Eu, por exemplo, experimentei pela primeira vez na semana passada.
Aos 13 anos, com o namorado de 17. Já haviam tentado antes, mas ele havia fracassado. Concordou comigo que ainda não se sente muito preparada, pode ser que mais tarde seja melhor. Para surpresa minha, as outras se manifestaram indiferentes – ainda não estavam pensando nisso: deixariam para mais tarde – quando tivessem 15, 16 anos...
De repente ela se voltou para mim com intensidade:
Você acha que eu devo parar com o fumo também?
É claro que deve – respondi com convicção.
O que eu preciso é de apoio – confessou ela.
Aquilo me comoveu. Tive pena daquela criança tão desprotegida num mundo feroz a ameaçá-la por todos os lados. Tanto poderia se salvar como acabar brutalizada e morta aos 16 anos numa cama de motel. Que fazer por ela? Pensei em lhe sugerir uma fonte qualquer de interesse imediato, emprestar-lhe um livro. Não haveria de ser uma leitura piegas sobre a moral e os bons costumes: alguma coisa que tocasse mais fundo a sua sensibilidade tão machucada pela vida.
Uma amiga minha que chegara em tempo de ouvir parte da sua história, tão impressionada como eu, sugeriu o livro certo: Clarice Lispector.
Este você vai curtir – avisei. – Mas para isso é preciso deixar o fumo primeiro.
Ela se foi em meio às outras, e alguns dias se passaram. Hoje de manhã me telefonou para dizer que havia começado a ler o livro, e estava gostando.

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

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