Minha filha apareceu aqui em casa com um
bando de amiguinhas, a meu pedido. Todas andam pelos 13, 14 anos. Era
minha intenção conversar com elas, saber a quantas andam essas
meninas hoje em dia, no início dos anos 1970.
Talvez o fato de ser pai de uma delas as
constrangesse um pouco, ou a mim mesmo – o certo é que eu não
soube muito bem o que perguntar, e acabamos conversando
generalidades.
Pude apurar que continuam considerando O
pequeno príncipe o melhor livro que já leram. Não leram
muitos: uma citou Fernão Capelo Gaivota, outra citou Jane
Eyre, nenhuma citou os livros da coleção “Menina-moça” do
gênero Poliana. Em matéria de música, continuam todas gostando dos
Beatles. Preferem Chico a Caetano. Sabem quem é o presidente dos
Estados Unidos, mas não têm senão uma vaga ideia de quem seja
Fidel Castro, nem o que é comunismo. Conhecem e empregam com candura
os maiores palavrões existentes, para pontuar a conversa. Algumas já
fumam, mas estão tentando parar. Em matéria de bebida, continuam
grandes consumidoras de Coca-Cola (uma delas me perguntou se tinha
cerveja. Não tinha). Quando me referi a namorados, limitaram-se a
mencionar uns meninos chamados Dudu, Caco, Dida e outros apelidos
assim: todos surfistas, “o maior barato”.
O assunto não foi longe. O interesse
delas me pareceu inconstante e difuso: falam ao mesmo tempo, se
agitam, riem muito, acham graça em tudo. Estão naquela fase em que
deixaram ontem de ser crianças e ingressam desprevenidas na
puberdade, para mergulhar em breve nas águas escuras da
adolescência. Não admiram os hippies: para elas são pessoas que
escolheram viver à toa, mas à custa dos outros. Veem televisão por
desfastio, não se entusiasmam pelas novelas nem pelos atores. Não
leem nem jornais nem revistas. Não ligam para futebol nem nenhum
esporte. Na verdade não ligam para nada. Estão na delas – não se
cansam de repetir.
Não fiquei sabendo qual era exatamente a
delas, e acabei eu próprio dizendo qual era a minha – entre outras
coisas condenando o cigarro como o pior dos vícios, enquanto fumava
um atrás do outro. Depois que saíram, fiquei pensando que talvez a
precocidade delas venha a ser apenas aparente: estão exercendo
inocentemente a sua meninice, até chegar a hora da verdade – a de
enfrentar como mulheres o que a vida lhes reserva. E seja qual for o
mundo de erros, confusão e violência que as espera, certamente
conseguirão sobreviver.
Estava eu nesta ilusão, quando no dia
seguinte... Parece até ter sido de encomenda: cinco meninas da mesma
idade e da mesma classe social, alunas de um colégio, vieram me
entrevistar, a mando de sua professora. Eu é que acabei por
entrevistá-las – e apesar da naturalidade que procurei simular o
tempo todo, fui passando aos sobressaltos, surpresa em surpresa, da
simples curiosidade ao extremo estarrecimento. Acabei em estado de
choque.
Não que eu seja assim tão careta, como
elas próprias fizeram questão de admitir. Até que sou legal –
segundo a condescendente opinião de uma delas. Exatamente a que me
chamou de biriteiro quando me viu tomando uísque e perguntou, com a
maior naturalidade, se eu não descolava um baseado para elas.
Baseado, para os não iniciados:
maconha.
É isso aí: todas elas fumavam maconha.
Não éramos inocentes no nosso tempo,
como muitos sustentam hoje em dia – e até acreditam estar falando
a verdade. Se esquecem dos tremendos porres de gim, cachaça, ou o
que quer que contivesse álcool, tomado às escondidas, às vezes no
gargalo. E mais: havia quem gostasse de dissolver no cuba-libre, que
era a bebida da moda, certo medicamento caseiro, afirmando que isso
provocava (nunca cheguei a experimentar) a sensação a que hoje
chamam de barato. E mais: pílula para ficar acordado – e
nem sempre para estudar às vésperas de exame: de pura farra. Mas o
nosso barato mesmo era curtido no Carnaval com o lança-perfume – e
havia quem guardasse uma reserva para o ano inteiro.
Só que passamos por tudo isso aos 18
anos; éramos rapazes, tontos de mocidade, queríamos abraçar o
mundo com as pernas e experimentar de tudo, por mera curiosidade.
Nenhum de nós, ao que eu saiba, se tornou viciado – a não ser, é
lógico, o famigerado cigarro com que preparo hoje o câncer de
amanhã – e os poucos que fizeram do álcool um inimigo.
Ao passo que essas meninas de hoje – e
são meninas! – se iniciam na maconha aos 13 anos. É possível que
nisso também sejam precoces, como em tudo mais: passam por essa fase
só de curiosidade, em breve estarão noutra – como as que me
visitaram na véspera.
Seria bom acreditar que assim seja – se
fosse só isso.
Uma das meninas, a mais viva e
inteligente, guriazinha de cabelos longos e corpo ainda de criança
apesar da puberdade já manifesta, me disse a certa altura que hoje
está só “no fumo”: abandonou “todo o resto”.
Resto? Que resto?
Ela foi desenrolando a sua história, a
cada pergunta minha. Viciou-se em maconha aos 11 anos: puxava fumo o
dia inteiro. (Hoje só consome dois cigarros por dia.) A própria mãe
a iniciou: fumava na vista da filha, juntamente com o pai e as
visitas; largava os cigarros de maconha por todo lado,
propositadamente, como por esquecimento, para que ela experimentasse.
Quando a mãe a viu fumando, lhe disse que era isso mesmo, maconha
não tinha importância: só não cheirasse pó (a tia é viciada em
cocaína), “a não ser depois dos trinta anos, quando a mulher já
não tem mais nada a esperar da vida”. Até que um dia a tia a
iniciou também nesse vício. O primo (17 anos) se encarregava de
arranjar a droga, que mais tarde ela própria passou a obter “com a
turma da praça”. Da última vez pagou 300 cruzeiros por duas
gramas. E onde arranjava dinheiro? Ela riu: na carteira do pai, na
bolsa da mãe – “descolava pelo menos quinhentos de cada vez”.
Que pais eram esses, que não davam por falta de quantias tão
grandes? Sim, eles são ricos, mas estão se psicanalisando – em
sua casa o dinheiro vai todo para os analistas. Ela própria tem o
seu. E cruzou as pernas que a minissaia deixava à mostra, atirando
os cabelos por sobre os ombros com as costas das mãos, num gesto a
um tempo coquete e nervoso, incontidamente repetido como o sestro dos
viciados:
– Mas eu acho que consegui parar em
tempo.
Corri os olhos pelas outras, que ouviam
nossa conversa com naturalidade:
– E vocês?
Sim, também já haviam experimentado.
Passei adiante: e LSD? Uma delas me disse que tomou ácido pela
primeira vez com o namorado, um menino de 17 anos. Outra disse que
uma amiga trouxe para ela do Peru. Outra ainda conseguira “de um
cara que fornece fumo para nós” (de graça da primeira vez,
através de um menino por ele aliciado e que acabara também
traficante). Elas próprias conheciam várias bocas de fumo e
vendedores de pó, sabiam obter diretamente.
Eu ouvia tudo aquilo como se estivesse
sonhando: parecia uma conversa inocente de crianças, falavam de
drogas e entorpecentes como sobre doces e sorvetes. Quem sabe o
inocente era eu? Quer dizer que todo mundo aceita isso, ninguém mais
se espanta? Nem mesmo a ilegalidade que praticavam as assustava? E o
risco que corriam? Elas riram, como se eu estivesse falando um
absurdo. Pois não seria eu que haveria de denunciá-las, ficassem
tranquilas: fiz mesmo questão de não lhes perguntar os nomes, nem
onde moravam, nem de que colégio eram. Limitei-me a continuar
descendo um a um os degraus da escada que leva ao inferno: bolinhas?
Só de vez em quando. Uma disse que tem uma irmã de 18 anos que está
tomando quarenta por dia: já não fala direito, baba o tempo todo,
tem os movimentos descoordenados. Outra disse que guarda em casa um
monte de receitas. Arrisquei ainda mais, usando a linguagem delas: e
pico? Não, ainda não experimentaram. Mas o tal primo de 17 anos
está com os dois braços inutilizados, agora tem que tomar picadas
nas veias do pé. Uma menina conhecida delas, em vez de heroína,
injeta na veia bolinha dissolvida.
A esta altura eu estava tonto – quem
parecia drogado era eu. Desviei a conversa para assuntos mais amenos:
o amor, por exemplo. Elas tinham namorado? Pretendiam se casar com
eles?
Bem, casar, propriamente, não: morar
junto, talvez. Experimentando antes, é claro. Eu já esperava por
tudo, mas não pelo que uma delas acrescentou – justamente a que
foi iniciada na maconha pela mãe:
– Eu, por exemplo, experimentei pela
primeira vez na semana passada.
Aos 13 anos, com o namorado de 17. Já
haviam tentado antes, mas ele havia fracassado. Concordou comigo que
ainda não se sente muito preparada, pode ser que mais tarde seja
melhor. Para surpresa minha, as outras se manifestaram indiferentes –
ainda não estavam pensando nisso: deixariam para mais tarde –
quando tivessem 15, 16 anos...
De repente ela se voltou para mim com
intensidade:
– Você acha que eu devo parar com o
fumo também?
– É claro que deve – respondi com
convicção.
– O que eu preciso é de apoio –
confessou ela.
Aquilo me comoveu. Tive pena daquela
criança tão desprotegida num mundo feroz a ameaçá-la por todos os
lados. Tanto poderia se salvar como acabar brutalizada e morta aos 16
anos numa cama de motel. Que fazer por ela? Pensei em lhe sugerir uma
fonte qualquer de interesse imediato, emprestar-lhe um livro. Não
haveria de ser uma leitura piegas sobre a moral e os bons costumes:
alguma coisa que tocasse mais fundo a sua sensibilidade tão
machucada pela vida.
Uma amiga minha que chegara em tempo de
ouvir parte da sua história, tão impressionada como eu, sugeriu o
livro certo: Clarice Lispector.
– Este você vai curtir – avisei. –
Mas para isso é preciso deixar o fumo primeiro.
Ela se foi em meio às outras, e alguns
dias se passaram. Hoje de manhã me telefonou para dizer que havia
começado a ler o livro, e estava gostando.
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula
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