Alguns textos neste livro são
verdadeiros, mas parecem falsos; outros são falsos, mas parecem
verdadeiros. Outros, ainda, misturam as duas categorias, propondo uma
espécie de indistinção entre elas. O caso que se conta aqui,
entretanto, é totalmente verdadeiro, embora seja difícil acreditar
que ele realmente aconteceu.
Gosto muito de Horacio Quiroga, esse
autor uruguaio/argentino, de vida trágica e ficção não menos
terrível, que criou um tipo de linguagem em que o leitor não sabe
se está a ler contos de terror ou tratados científicos. Em seus
contos, ele consegue de tal forma confundir objetividade e absurdo
que o impacto de suas histórias se amplia por uma sensação do mais
puro realismo. E dentre todas elas, uma das mais conhecidas, não à
toa, é “A galinha degolada”, que também dá nome a um de seus
livros. Nesse conto, um casal jovem e apaixonado, para completar sua
felicidade, dá à luz um menino forte e saudável. Tudo corre às
mil maravilhas, até que no décimo sétimo mês — e aqui estou
certa dessa contagem, mas faço questão de me manter numa margem de
incerteza, porque, por mais que já tenha relido o conto algumas
vezes depois do que me aconteceu, a literatura de Quiroga é tão
movediça que quero ficar nessa bruma de indefinição, como se ela
fosse a atitude mais coerente e respeitosa para com o autor —
começa a se desenvolver uma doença no menino. Ele vai se tornando
imóvel e alheio a tudo e os pais o entregam aos cuidados de uma
criada, desesperados. Depois de algum tempo, decidem dar nova chance
ao destino e têm um outro bebê, a quem enchem de cuidados, temendo
a repetição da doença. E, aos dezessete meses, novamente ela se
manifesta, condenando o segundo filho também ao mutismo e ao
isolamento. O casal, quase sem esperanças e com seu relacionamento
em frangalhos, resolve ter ainda mais um filho, com quem a história
se repete, nas mesmas condições e prazo. E ainda com um quarto,
deixando o casal em estado de total desolação. Aos poucos, os pais
dos meninos abandonam os filhos à própria sorte. Os quatro ficam o
dia inteiro sentados no quintal, em frente a um muro, calados,
somente sensíveis à luz do sol e às cores, que os afetam
visivelmente. Depois de alguns anos, o casal tem uma menina, a quem,
obviamente, tratam como uma princesa e que não apresenta a doença.
Finalmente, certa paz parece retornar ao lar e os pais acreditam que
podem ser felizes de novo. Esquecem-se completamente dos rapazes,
inclusive deixando-os sujos e desamparados. Um dia, a cozinheira da
casa, ao preparar uma galinha para o almoço, degola-a na frente dos
quatro irmãos, que observam o ato, impressionados com a vermelhidão
do sangue que escorre de seu pescoço, chegando até o quintal. Na
cena seguinte, os pais e a menina estão retornando de um passeio e a
garota se solta das mãos de ambos para correr para o quintal, onde
ela sobe no muro para espiar algo na casa vizinha. Novamente, não
tenho certeza absoluta da sequência dos fatos, nem mesmo do que ela
foi procurar ali no muro. Os irmãos se entreolham e, como que
tacitamente, tomam uma decisão silenciosa. Puxam-na para baixo e,
sem demora, degolam-na como havia sido feito à galinha. Os pais,
dando-se conta do sumiço da menina, começam a chamá-la, mas,
quando desconfiam do que pode ter acontecido, já é tarde demais.
No conto não há uma condenação do
gesto dos irmãos e creio que tampouco do descuido dos pais, embora
esta última alternativa seja mais plausível. O que fica, como nos
outros contos de Quiroga, é uma constatação sobre a
imponderabilidade do trágico.
Poucos dias depois da leitura dessa
história, precisei fazer uma viagem ao exterior. Estava no saguão
do aeroporto, aguardando a chamada para o embarque, quando, a pouca
distância de mim, avistei um rapaz jovem e forte se aproximando de
um homem que parecia ser seu pai. Ele o abraçou carinhosamente e foi
correspondido. Quando eles se viraram, vi que o garoto era portador
de síndrome de Down, lembrei-me do conto e me alegrei de ele ser
tratado com tanto afeto. Pouco tempo depois, outro rapaz aproximou-se
da dupla e, da mesma forma, abraçou o pai. Vi que ele tinha a mesma
característica e fiquei ainda mais admirada, para, em seguida,
surgir ainda um terceiro, também portador da síndrome,
comportando-se da mesma forma. Não podia acreditar. Um pai e três
filhos especiais, todos abraçando-se e demonstrando camaradagem. Não
imaginava que isso pudesse existir, ainda mais porque aquele homem
parecia estar viajando sozinho com os garotos.
Na cadeira ao meu lado, um homem estava
com um livro aberto fazia algum tempo. Sempre que percebo alguém
lendo perto de mim em espaços públicos, coisa cada vez mais rara,
gosto de espionar qual é o livro, como se isso pudesse estabelecer
um tipo de pacto entre nós. Mas mal pude crer quando vi que a
leitura era “A galinha degolada”, e não apenas o livro, mas o
próprio conto. A cena até certo ponto similar à história de
Quiroga — mas invertendo o aspecto trágico — se passava
empiricamente, à minha frente e, literariamente, ao meu lado.
Fiquei sem saber o que sentir, pensar,
como interpretar, assim que recuperei parte dos sentidos. Aquilo
estava mesmo acontecendo? Será que eu estava dentro de uma história
de Borges, dentro de um espelho, existiria mesmo o eterno retorno
nietzschiano, será que eu estava afetada pelas muitas histórias que
vinha lendo, como uma Bovary desqualificada? Ou seria tudo um sonho,
do qual eu iria logo despertar, ou então não, meus sonhos noturnos
é que eram reais e todo o resto é falso e a vida não passa de uma
narrativa mal escrita? Aquilo tudo poderia ser um aviso, um sinal
enviado por deuses ociosos, uma brincadeira inconsequente do destino
em que não acredito. Mas sinal de quê e por quê?
Não. Era tudo não mais do que uma
coincidência muito implausível, mas, ainda assim, uma coincidência.
Porém, mal chegando a essa conclusão
pragmática e frustrante, fui levada a refletir sobre o significado
das coincidências e passei o resto da viagem, movida por aquelas
duas cenas, pensando sobre isso.
Seria uma tentativa pueril de explicar o
inexplicável ou uma forma madura e lúcida de compreender os
significados dos eventos, de sua multiplicidade?
Um pai, três filhos, o saguão de um
aeroporto, eu a olhá-los, um homem lendo “A galinha degolada”,
alguns dias depois de eu ter lido o conto de Horacio Quiroga.
Não sei aproveitar essa agulha que o
tempo ofereceu e nela enfiar algum fio, costurar alguma história. Na
verdade, não quero.
Vou deixar essa coincidência para a
enciclopédia inexistente dos mistérios esquisitos, que, como o nome
diz, não existe. Mas é lá que ele vai ficar.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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