Meses depois que escola abriu, chegou uma
pequena leva de trabalhadores à fazenda. Dentre eles, uma mulher
franzina de cabelos negros e lisos, de nome Maria Cabocla. Estava na
companhia do marido e seis filhos. A família foi instalada em uma
tapera nas terras onde morava Tio Servó. Havia chegado também um
homem alto e magro, talvez com idade para ser meu pai, que se tornou
vaqueiro da fazenda. Tinha gestos discretos e era de pouca fala. Se
apresentou como Tobias e passou a frequentar as festas de jarê em
nossa casa. Fez amizade com Zeca Chapéu Grande e tinha grande apreço
por histórias. Logo passaram a se encontrar nas roças e no barracão
para ouvir as ordens do gerente da fazenda. Às vezes, eu o via nas
trilhas da fazenda ou nas veredas para a várzea. Ouvia seu
cumprimento – bom dia, sinhá moça – acenava com a cabeça,
seguia meu caminho, mas sentia seus olhos queimarem minhas costas
feito brasa.
Com o passar do tempo, Tobias já deveria
saber de minha deficiência e não me importunava com perguntas.
Retirava um raminho de sempre-viva do chapéu e colocava em meu
cabelo. Sentia vergonha e incômodo. Não estava acostumada a ter que
responder às cortesias de estranhos. Depois tive vontade de sorrir,
mas, desajeitada que era quando precisava me relacionar com outras
pessoas, só conseguia desviar meu olhar e seguir minha caminhada.
Nas noites de jarê via o vaqueiro de prosa com outros moradores, por
vezes se juntavam mulheres, como as meninas de dona Tonha, e ele
continuava sorrindo, cortejando, principalmente depois de tomar umas
boas doses de cachaça. No começo senti indiferença, até gostava
quando estava em prosas animadas com outras pessoas e seus olhos me
deixavam quieta, ao lado de Domingas ou de minha mãe. Depois passei
a me sentir inquieta e desconfiada, querendo talvez que dirigisse sua
atenção a mim.
Tobias ganhou a confiança de Sutério e
passou a guiar boiada pela estrada, porque havia parado de chover e
os pastos continuavam mirrados. Muitos trabalhadores destinavam horas
que deveriam dar nos roçados para cortar a taboa dos marimbus, que
servia para dar de comer aos animais. Mas, ainda assim, Tobias e
outros vaqueiros por vezes levavam o gado para terrenos mais
distantes, na beira do Utinga, no caminho da estrada de rodagem.
Ele também começou a substituir o
gerente nos assuntos que precisavam ser resolvidos na cidade. Alguma
encomenda que chegava, ou mantimentos para serem vendidos a preços
altos no barracão. Nas conversas longe de Sutério, chamávamos o
barracão de “um roubo”. “Vou ter que comprar em “um roubo”,
não dá pra ir à cidade hoje”, era o que dizíamos aos cochichos,
e terminamos por batizar o armazém. Tobias seguia com seu cavalo
pela estrada até a cidade e voltava trazendo as encomendas em
bocapios dispostos na carroça. Ao retornar de uma dessas andanças,
veio pela estrada afoito, como se guardasse uma boa notícia. Quando
eu via alguém nessa alegria desmedida, deixava minha imaginação
correr livre e pensava de pronto que havia encontrado uma pedra de
diamante, tirado a sorte grande e iria arrumar seus panos para
partir. Apeou do cavalo, chamou meu pai, que havia acabado de chegar
da roça, e lhe entregou um envelope. Meu pai não poderia ler, então
passou o envelope para minha mãe, que perguntou o que era, e Tobias
só fez repetir que lhe deram na cidade e que era para o compadre
Zeca. Salu estava envelhecendo, e no cair da tarde, à luz de
candeeiro, não enxergava mais direito. Deveria estar precisando de
óculos, como a professora Lourdes. Passou o envelope para Domingas,
que leu com os olhos que faiscavam refletindo a luz fraca. “É de
Bibiana, mãe.”
Meu pai sentou numa cadeira. Não
conseguia olhar fixamente para ninguém. Minha mãe suspirou por
Deus, em prece para que fossem boas notícias. Domingas rasgou o
envelope, havia outro envelope dentro, esse destinado a Severo pai,
nosso tio Servó. Tobias se aproximou de mim, seu gibão cheirava a
couro que ainda curtia, seus olhos cercavam Domingas, mas logo se
desviavam em minha direção. Minha irmã se pôs a ler, aproximando
o papel de vez em quando do candeeiro. Parecia que o bilhete havia
sido escrito com uma caneta fraca. Estavam todos bem, trabalhavam em
uma fazenda na região de Itaberaba. Bibiana se aproximava de ganhar
criança. Gostaria que nossa mãe fizesse o parto, tentaria voltar
para o nascimento, mas se não desse, viriam no fim do ano. Severo
estava trabalhando no corte de cana, tinha feito amizade com gente do
sindicato. Tinham notícias da chuva que havia encerrado o longo
período de seca, porque lá também chovia. Que iriam tentar guardar
dinheiro para comprar um pedaço de terra. Queriam ser donos da
própria terra. Estavam bem, não lhes faltava nada. Que no início
do próximo ano ela iria fazer um supletivo voltado para trabalhador
rural e logo poderia fazer o magistério para ser professora.
Perguntava por mim, Domingas e Zezé. Dizia que sentia falta de
todos. Logo mandaria notícias.
“O que é que esses meninos têm na
cabeça?”, perguntou meu pai sem esperar resposta.
Salu enxugou uma lágrima e levou o
candeeiro para a cozinha, chamando Domingas para ler de novo. Senti
conforto em saber que estavam bem, abrigados, dormindo sob um teto e
se alimentando do próprio trabalho. Senti um tanto de mágoa também
pela atenção que minha mãe dava à carta, pelo alvoroço que havia
causado naquele momento, mesmo estando distante. Senti amargura pela
simplicidade das palavras, pela culpa não expiada, pela voz que
Bibiana me negava. Por eu estar na mesma linha da carta como um nome
apenas, junto a Domingas e Zezé. Não havia nenhuma pergunta sobre
como eu estava na escola, quem me fazia companhia, quem comunicava as
coisas que eu precisava, como me desenrolava entre minhas atividades
sem sua presença.
O cheiro do gibão de Tobias era uma
mistura de suor e couro que ainda estava sendo curtido, como se não
estivesse pronto para ser usado. Quase conseguia ver as moscas
procurando restos de carne sobre seu corpo. Ele trocou duas frases
com meu pai, pediu licença, fez uma reverência se despedindo de mim
e montou o cavalo. Ao vê-lo seguindo pela estrada, senti vontade de
que desse meia-volta, voltasse ao meu encontro e pedisse a meu pai
para me levar para seu rancho. Queria que cuidasse de mim, eu
cuidaria dele. Queria experimentar a vida que Bibiana agora mostrava
em sua carta, com sua letra bem desenhada, que levou Salu às
lágrimas e deixou meu pai contrariado só na casca, por dentro feito
de mel, com uma expressão séria, interrompida por chamas de luz que
diziam o que não soube dizer: ele estava contente por saber que
estavam bem e que pensavam na família. Senti vontade de que Tobias
voltasse naquele instante, quiçá amanhã ou depois, mas que não
demorasse a fazer de mim sua mulher também.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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