domingo, 23 de maio de 2021

Torto Arado / 3

 


Meses depois que escola abriu, chegou uma pequena leva de trabalhadores à fazenda. Dentre eles, uma mulher franzina de cabelos negros e lisos, de nome Maria Cabocla. Estava na companhia do marido e seis filhos. A família foi instalada em uma tapera nas terras onde morava Tio Servó. Havia chegado também um homem alto e magro, talvez com idade para ser meu pai, que se tornou vaqueiro da fazenda. Tinha gestos discretos e era de pouca fala. Se apresentou como Tobias e passou a frequentar as festas de jarê em nossa casa. Fez amizade com Zeca Chapéu Grande e tinha grande apreço por histórias. Logo passaram a se encontrar nas roças e no barracão para ouvir as ordens do gerente da fazenda. Às vezes, eu o via nas trilhas da fazenda ou nas veredas para a várzea. Ouvia seu cumprimento – bom dia, sinhá moça – acenava com a cabeça, seguia meu caminho, mas sentia seus olhos queimarem minhas costas feito brasa.
Com o passar do tempo, Tobias já deveria saber de minha deficiência e não me importunava com perguntas. Retirava um raminho de sempre-viva do chapéu e colocava em meu cabelo. Sentia vergonha e incômodo. Não estava acostumada a ter que responder às cortesias de estranhos. Depois tive vontade de sorrir, mas, desajeitada que era quando precisava me relacionar com outras pessoas, só conseguia desviar meu olhar e seguir minha caminhada. Nas noites de jarê via o vaqueiro de prosa com outros moradores, por vezes se juntavam mulheres, como as meninas de dona Tonha, e ele continuava sorrindo, cortejando, principalmente depois de tomar umas boas doses de cachaça. No começo senti indiferença, até gostava quando estava em prosas animadas com outras pessoas e seus olhos me deixavam quieta, ao lado de Domingas ou de minha mãe. Depois passei a me sentir inquieta e desconfiada, querendo talvez que dirigisse sua atenção a mim.
Tobias ganhou a confiança de Sutério e passou a guiar boiada pela estrada, porque havia parado de chover e os pastos continuavam mirrados. Muitos trabalhadores destinavam horas que deveriam dar nos roçados para cortar a taboa dos marimbus, que servia para dar de comer aos animais. Mas, ainda assim, Tobias e outros vaqueiros por vezes levavam o gado para terrenos mais distantes, na beira do Utinga, no caminho da estrada de rodagem.
Ele também começou a substituir o gerente nos assuntos que precisavam ser resolvidos na cidade. Alguma encomenda que chegava, ou mantimentos para serem vendidos a preços altos no barracão. Nas conversas longe de Sutério, chamávamos o barracão de “um roubo”. “Vou ter que comprar em “um roubo”, não dá pra ir à cidade hoje”, era o que dizíamos aos cochichos, e terminamos por batizar o armazém. Tobias seguia com seu cavalo pela estrada até a cidade e voltava trazendo as encomendas em bocapios dispostos na carroça. Ao retornar de uma dessas andanças, veio pela estrada afoito, como se guardasse uma boa notícia. Quando eu via alguém nessa alegria desmedida, deixava minha imaginação correr livre e pensava de pronto que havia encontrado uma pedra de diamante, tirado a sorte grande e iria arrumar seus panos para partir. Apeou do cavalo, chamou meu pai, que havia acabado de chegar da roça, e lhe entregou um envelope. Meu pai não poderia ler, então passou o envelope para minha mãe, que perguntou o que era, e Tobias só fez repetir que lhe deram na cidade e que era para o compadre Zeca. Salu estava envelhecendo, e no cair da tarde, à luz de candeeiro, não enxergava mais direito. Deveria estar precisando de óculos, como a professora Lourdes. Passou o envelope para Domingas, que leu com os olhos que faiscavam refletindo a luz fraca. “É de Bibiana, mãe.”
Meu pai sentou numa cadeira. Não conseguia olhar fixamente para ninguém. Minha mãe suspirou por Deus, em prece para que fossem boas notícias. Domingas rasgou o envelope, havia outro envelope dentro, esse destinado a Severo pai, nosso tio Servó. Tobias se aproximou de mim, seu gibão cheirava a couro que ainda curtia, seus olhos cercavam Domingas, mas logo se desviavam em minha direção. Minha irmã se pôs a ler, aproximando o papel de vez em quando do candeeiro. Parecia que o bilhete havia sido escrito com uma caneta fraca. Estavam todos bem, trabalhavam em uma fazenda na região de Itaberaba. Bibiana se aproximava de ganhar criança. Gostaria que nossa mãe fizesse o parto, tentaria voltar para o nascimento, mas se não desse, viriam no fim do ano. Severo estava trabalhando no corte de cana, tinha feito amizade com gente do sindicato. Tinham notícias da chuva que havia encerrado o longo período de seca, porque lá também chovia. Que iriam tentar guardar dinheiro para comprar um pedaço de terra. Queriam ser donos da própria terra. Estavam bem, não lhes faltava nada. Que no início do próximo ano ela iria fazer um supletivo voltado para trabalhador rural e logo poderia fazer o magistério para ser professora. Perguntava por mim, Domingas e Zezé. Dizia que sentia falta de todos. Logo mandaria notícias.
O que é que esses meninos têm na cabeça?”, perguntou meu pai sem esperar resposta.
Salu enxugou uma lágrima e levou o candeeiro para a cozinha, chamando Domingas para ler de novo. Senti conforto em saber que estavam bem, abrigados, dormindo sob um teto e se alimentando do próprio trabalho. Senti um tanto de mágoa também pela atenção que minha mãe dava à carta, pelo alvoroço que havia causado naquele momento, mesmo estando distante. Senti amargura pela simplicidade das palavras, pela culpa não expiada, pela voz que Bibiana me negava. Por eu estar na mesma linha da carta como um nome apenas, junto a Domingas e Zezé. Não havia nenhuma pergunta sobre como eu estava na escola, quem me fazia companhia, quem comunicava as coisas que eu precisava, como me desenrolava entre minhas atividades sem sua presença.
O cheiro do gibão de Tobias era uma mistura de suor e couro que ainda estava sendo curtido, como se não estivesse pronto para ser usado. Quase conseguia ver as moscas procurando restos de carne sobre seu corpo. Ele trocou duas frases com meu pai, pediu licença, fez uma reverência se despedindo de mim e montou o cavalo. Ao vê-lo seguindo pela estrada, senti vontade de que desse meia-volta, voltasse ao meu encontro e pedisse a meu pai para me levar para seu rancho. Queria que cuidasse de mim, eu cuidaria dele. Queria experimentar a vida que Bibiana agora mostrava em sua carta, com sua letra bem desenhada, que levou Salu às lágrimas e deixou meu pai contrariado só na casca, por dentro feito de mel, com uma expressão séria, interrompida por chamas de luz que diziam o que não soube dizer: ele estava contente por saber que estavam bem e que pensavam na família. Senti vontade de que Tobias voltasse naquele instante, quiçá amanhã ou depois, mas que não demorasse a fazer de mim sua mulher também.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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