quarta-feira, 12 de maio de 2021

Renovar a virgindade do mundo

Cada noite Zorba me leva a passeio através da Grécia, da Bulgária e Constantinopla; eu fecho os olhos e vejo. Ele percorre os Bálcãs, confusos e atormentados; observou tudo, com seus olhos pequenos de falcão, que abre a cada instante, cheios de surpresa. As coisas às quais estamos acostumados, e diante das quais passamos indiferentes, se erguem para Zorba como enigmas indecifráveis. Ele vê passar uma mulher e pára espantado: “Que mistério é esse?” Pergunta. O que é uma mulher, e por que ela nos faz dançar a cabeça? Diga-me o que é isso?
E se interroga com igual estupor diante de um homem, de uma árvore florida, de um copo de água fresca. Zorba vê cada dia às coisas como se fosse pela primeira vez.
Ontem estávamos sentado diante do barracão. Tendo tomado um copo de vinho, virou-se ele para mim, alarmado:
O que é essa água vermelha, patrão, diga-me! Uma velha videira deita ramos, tem uns penduricalhos ácidos que pendem, passa o tempo e o sol os amadurece; eles ficam doces como o mel e então passam a chamar-se uvas; são apanhados, esmagados, bota-se o suco em tonéis, ele fermenta sozinho, são abertos no dia de São Jorge-Beberrão, e virou vinho! E o que é ainda esse prodígio: você bebe esse suco vermelho e eis sua alma que cresce, que não cabe mais na velha carcaça, e que desafia Deus para a luta. O que é isso, patrão? Diga-me!
Eu não falava. Ao ouvir Zorba, sentia-se renovar a virgindade do mundo. Todas as coisas desbotadas e quotidianas retomavam o brilho do primeiro dia, quando saíram das mãos de Deus. A água, a mulher, a estrela, o pão voltavam à misteriosa fonte primitiva, e o turbilhão divino empolgava de novo os ares.
Eis por que cada noite eu esperava, com impaciência, deitado sobre a vegetação da beira da praia, que Zorba voltasse. Coberto de lama, riscado de carvão, ele saía das entranhas da terra como uma gigantesca ratazana, com seu andar longo e desengonçado. De longe eu adivinhava como havia sido seu dia de trabalho: pela atitude de seu corpo, por sua cabeça baixa ou erguida, pelo balanço de seus grandes braços.
No começo ia com ele: observava os trabalhadores, fazia força para tomar um novo caminho, me interessar pelas tarefas práticas, conhecer e amar o material humano que havia caído em minhas mãos, aproveitar a alegria há tanto tempo desejada de não mais lidar com palavras, mas com homens vivos. E eu fazia projetos românticos
se a extração da linhita caminhasse bem — de organizar uma comunidade onde todos trabalharíamos, onde tudo seria comum, onde comeríamos todos a mesma comida e vestiríamos a mesma roupa, como irmãos. Criava dentro de mim uma nova ordem religiosa, gente de uma nova vida...
Mas, não me decidia a comunicar a Zorba meus projetos.
Amolado, ele me ia ir e vir entre os operários, interrogar, intervir, e tomar sempre o partido do trabalhador. Zorba franzia os lábios:
Patrão, não vai dar umas voltas por aí? Está um sol danado!
Mas eu, nos primeiros tempos, insistia e não ia. Interrogava, conversava, conhecia as histórias de todos os meus operários: os filhos que tinham que sustentar, suas irmãs a casar, os velhos pais impotentes; suas preocupações, suas doenças e seus tormentos.
Não se meta nas histórias deles, me dizia Zorba, aborrecido. Seu coração, se envolverá nelas, você gostará deles mais do que é preciso e mais do que é vantajoso para o nosso trabalho. Você perdoará, não importa o que fizerem... e então, pobres deles, é preciso que você saiba. Quando o patrão é duro, os operários o temem, o respeitam e trabalham. Quando o patrão é fraco, eles põem-lhe arreios e levam a vida na flauta. Compreende?”
Dias depois, terminado o trabalho, atirou sua picareta no chão, diante do barracão, com um ar exasperado.
Afinal de contas, patrão — gritou ele, — não se meta mais em nada. Eu fico a construir e você a demolir. Que fábulas são essas afinal que você contava a eles? Socialismos e fantasias! Você é um pregador ou um capitalista? É preciso escolher.
Mas, como escolher? Eu estava devorado pelo desejo ingênuo de unir as duas coisas, de encontrar a síntese onde confraternizassem os opostos irredutíveis a alcançar, de uma vez só, a vida terrestre e o reino dos céus. Isso vinha há muito tempo, desde minha primeira infância. Quando estava ainda no colégio, havia fundado com meus amigos mais íntimos uma fraternidade amiga — esse era o nome que escolhêramos — e havíamos jurado, fechados à chave em meu quarto, que consagraríamos a vida a combater a injustiça. Grandes lágrimas corriam sobre nossos olhos no momento em que, com a mão no coração, prestamos juramento.
Ideais pueris! E, no entanto, ai daquele que rir ao ouvi-los.
Quando vejo o que se transformaram os membros da fraternidade amiga — doutorecos, rábulas, quitandeiros, politicotes safados, pequenos jornalistas — meu coração fica pequenino. E áspero e rude, ao que parece, o clima dessa terra, pois se as sementes mais preciosas não germinam ou são sufocadas pelo capim ou pelas urtigas. Eu, vejo-o claramente hoje, não sou ainda um conformado.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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