Pois e eu que durmo tão mal, dormi de
oito da noite até seis da manhã. Dez horas: senti um orgulho
pueril. Acordei com o corpo todo aumentado nas suas células. Ah,
isso é vida normal, então? mas então é muito bom!
E eu que nunca fiz luxo para comer, andei
há um tempo fazendo dieta para perder uns quilos a mais. Aí
experimentei uma vida anormal para comer. Andava exasperada como se
outros estivessem comendo o que era meu. Então, de raiva e fome, de
repente comi o que bem quis. E como é bom comer, dá até vergonha.
E certo orgulho também, o orgulho de se ser um corpo exigente. Ah
que me perdoem os que não têm o que comer; o que vale é que esses
não são os que me leem.
Outro prazer que é normal é quando
escrevo o que se chama de inspirada. O pequeno êxtase da
palavra fluir junto do pensamento e do sentimento: nessa hora como é
bom ser uma pessoa!
E receber o telefonema de um amigo, e a
comunicação de vozes e alma ser perfeita? Quando se desliga: que
prazer dos outros existirem e de a gente se encontrar nos outros. Eu
me encontro nos outros. Tudo o que dá certo é normal. O estranho é
a luta que se é obrigado a travar para obter o que simplesmente
seria o normal.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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