quinta-feira, 20 de maio de 2021

— O homem é uma fera!

Deus seja louvado! Sinto-me ainda pronto para partir em expedições quixotescas. No domingo nós nos aprontávamos os dois como jovens noivos: barbeávamo-nos, púnhamos uma camisa fresca e branca e íamos, no início da tarde, à casa de Madame Hortência. Todos os domingos ela sangrava para nós uma galinha e nós nos sentávamos os três para comer e beber; depois Zorba estendia suas longas patas sobre os seios hospitaleiros da senhora e tomava posse deles.
Quando caía à noite, voltávamos para nossa praia, à vida nos parecia cheia de boas intenções, velha mas muito agradável e acolhedora, como Madame Hortência.
Um domingo, voltando de um de nossos copiosos banquetes, decidi falar e contar a Zorba meus projetos. Ele me escutou, de boca aberta, obrigando-se a ter paciência. De vez em quando apenas balançava vigorosamente com irritação sua cabeçorra. Desde as primeiras palavras o vinho desapareceu de seu copo, e sua mente aclarou-se. Quando terminei, arrancou nervosamente, dois ou três fios de seu bigode.
Com sua permissão, patrão — disse ele, — tenho a impressão de que seu miolo não é muito consistente, como deve ser um bom miolo. Que idade você tem?
Trinta e cinco anos.
Oh Diabo! Então vai ficar mole para sempre.
E caiu no riso. Fiquei irritado:
Você não acredita no homem? — gritei-lhe.
Não se zangue, patrão. Não, não creio em nada. Se eu acreditasse no homem, teria que acreditar também em Deus, e também no Diabo. E isso é muito complicado. As coisas iam ficar difíceis, e me dar muita amolação.
Calou-se, tirou seu barrete, pôs-se a coçar a cabeça com energia e arrancar fios do bigode como se quisesse tirá-lo todo.
Queria dizer alguma coisa, mas se continha. Olhou-me com o canto dos olhos, olhou fixamente, e decidiu-se.
O homem é uma fera! — gritou ele, espancando com seu bastão as pedras do caminho. — uma grande fera. Sua senhoria não sabe, ao que parece tudo foi fácil para você. Mas pergunte a mim: uma fera, é o que lhe digo! Você é mau com ele: ele lhe respeita e teme. Você é bom com ele: ele lhe arranca os olhos. Guarde as distâncias, patrão, não dê demais aos homens. Não vá lhes dizer que todos são iguais e todos têm os mesmos direitos. Na mesma hora eles pisarão no seu direito, roubarão seu pão e lhe deixarão morrer de fome. Guarde as distâncias, patrão, pelo bem que lhe quero!
Mas você não crê em nada, afinal? — disse-lhe exasperado.
Não! Eu não creio em nada, quantas vezes quer que repita? Eu não creio em nada, nem em ninguém; só em Zorba. Mas não porque Zorba seja melhor que ninguém, não. Em absoluto. Ele é também uma fera. Mas eu acredito em Zorba porque ele é o único que tenho em meu poder, o único que conheço; todos os outros são fantasmas. É com meus olhos que enxergo, com minhas orelhas que ouço, com minhas tripas que faço a digestão. Todos os outros para mim são fantasmas. Quando morrer eu, morre tudo. O mundo zorbesco inteirinho ruirá totalmente.
E você fala de egoísmo — disse-lhe eu sarcástico.
Não posso fazer nada, patrão! Veja, é assim: comi favas, falo favas. Sou Zorba, falo Zorba.
Não disse nada. As palavras de Zorba caíram sobre mim como chicotadas. Eu o admirei por ser assim, forte, de poder desprezar os homens a esse ponto e, ao mesmo tempo, ter um tamanho desejo de viver e de trabalhar entre eles. Em seu lugar, eu me teria feito ermitão ou teria que enfeitar os homens com plumas para poder suportá-los. Zorba virou-se e me olhou. À claridade das estrelas vi sua boca, que num sorriso unia as orelhas.
Ficou aborrecido, patrão? — disse ele, parando subitamente.
Tínhamos chegado ao barracão. Zorba olhou-me com ternura e inquietude.
Não respondi. Sentia que meu espírito estava de acordo com Zorba, mas meu coração resistia, queria sair, escapar da fera e abrir um caminho.
Não tenho sono, Zorba. Vá deitar-se.
As estrelas cintilavam, o mar suspirava e lambia as conchas, um vaga-lume acendeu sobre seu ventre a luzinha erótica. Os cabelos da noite escorriam de orvalho.
Deitei-me de costas e mergulhei no silêncio, sem pensar em nada. À noite, o mar e eu fizemo-nos uma coisa só, e eu sentia minha alma como uma vaga-lume com seu ventre iluminado de ouro-verde, que havia pousado sobre a terra e esperava.
As estrelas caminhavam, as horas passavam — e quando me levantei tinha, não sei como, gravada em mim a dupla tarefa que deveria cumprir nessa praia:
Escapar de Buda, desembaraçar-me nas palavras de todas as preocupações metafísicas e liberar minha alma de uma vã angústia.
Estabelecer, a partir desse momento, um contato profundo e direto com os homens.
Talvez, disse comigo mesmo, ainda haja tempo.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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