segunda-feira, 3 de maio de 2021

O chapéu

E agora, que em tempo e lugar apropriados, depois de um cruzeiro inicial tão largo e prolongado, Ahab – atravessadas todas as outras zonas de caça – parecia ter encurralado seu inimigo em um beco oceânico, para ali matá-lo da maneira mais segura; agora que ele se encontrava nas mesmas latitude e longitude onde sua ferida torturante lhe fora imposta; agora que havia falado com uma embarcação que de fato enfrentara Moby Dick no dia anterior – e agora que todos os encontros sucessivos com vários navios concorriam para mostrar de modos diversos a indiferença demoníaca com que a Baleia Branca destruía seus perseguidores, cautos ou incautos; era nesse momento que algo surdia nos olhos do velho, algo cuja visão era insuportável às almas fracas. Como a sempre firmada estrela polar, que durante os seis meses da longa noite ártica mantém o olhar penetrante, presente e central; também o propósito de Ahab resplandecia fixamente sobre a sempiterna meia-noite da melancólica tripulação. Ele os dominava tanto que todos os presságios, dúvidas, receios e temores preferiam esconder-se em suas almas, sem deixar despontar uma única haste ou folha.
Nesse intervalo pressago, também os humores, forçados ou naturais, desapareceram. Stubb não tentou provocar sorrisos; e Starbuck não tentou reprimi-los. Igualmente, alegria e tristeza, esperança e medo pareciam reduzidos à mais fina poeira e triturados, àquela altura, no almofariz da alma de aço de Ahab. Como máquinas, moviam-se em silêncio pelo convés, sempre cientes de que o olhar do velho déspota estava sobre eles.
Mas se você o examinasse profundamente em suas horas mais secretas e sigilosas; quando ele supunha que nenhum olhar, exceto um, estivesse sobre ele; você então teria visto que, assim como o olhar de Ahab infundia medo na tripulação, o olhar inescrutável do Parse amedrontava Ahab; ou, de algum modo, por vezes parecia afetá-lo de forma arrebatadora. Tal era a estranheza, nova e movediça, que passava a envolver o esguio Fedallah naquele momento; e tais os estremecimentos, incessantes, que o agitavam; que os marinheiros começaram a olhar desconfiados; um tanto indecisos, como parecia, quanto à substância de que era investido, se de fato mortal, ou antes uma sombra trêmula lançada ao convés pelo corpo de algum ser invisível. E aquela sombra estava sempre a pairar por ali. Pois nem mesmo à noite Fedallah parecia dormir ou descer. Podia permanecer imóvel durante horas; mas nunca sentado ou recostado; seus olhos sombrios, porém fantásticos, diziam claramente – Nós, os dois vigias, jamais descansamos.
E em nenhum momento, de noite ou de dia, podiam os marinheiros ir ao convés sem ver Ahab diante deles; fosse de pé no buraco de apoio, fosse caminhando pelas tábuas entre dois limites invariáveis – o mastro grande e a mezena; ou então viam-no de pé na escotilha da cabine –, seu pé vivo à frente por sobre o convés, como se prestes a dar um passo; o chapéu descido pesadamente sobre os olhos; de tal modo que, apesar de sua imobilidade, apesar dos dias e noites que se somavam, sem que tivesse se recostado à rede; assim, escondido atrás do chapéu caído, eles não saberiam dizer sem equívocos se, em certas ocasiões, seus olhos estavam realmente fechados: ou se continuavam a examiná-los; não importava, ainda que assim ficasse na escotilha durante uma hora seguida e a imperceptível umidade noturna se acumulasse em gotas de orvalho sobre a capa e o chapéu talhados em pedra. A roupa que a noite molhara, o sol do dia seguinte secaria; e assim, dia após dia, noite após noite; não saiu mais do convés; quando queria alguma coisa da cabine, mandava buscar.
Comia também ao ar livre; isto é, suas duas únicas refeições – café-da-manhã e almoço: nunca tocava no jantar; nem fazia a barba; que crescia escura e retorcida, como as raízes desenterradas das árvores arrancadas pelo vento, que continuam a crescer em vão na base nua, embora o verdor de cima haja perecido. Embora sua vida toda tivesse se limitado à vigília no convés; e embora a mística vigília do Parse, como a sua, não conhecesse interrupção; ainda assim, os dois pareciam nunca falar um com o outro, a não ser que, a longos intervalos, algum assunto sem importância se fizesse necessário. Embora uma magia poderosa parecesse unir secretamente a dupla; para o público, a tripulação aterrorizada, eles pareciam separados como dois mastros. Só por acaso durante o dia trocavam uma palavra; durante a noite, ambos eram mudos, pelo menos no que dizia respeito ao mais leve intercâmbio verbal. Por vezes, durante longas horas, sem uma única saudação, permaneciam separados sob a luz das estrelas; Ahab em sua escotilha, o Parse perto do mastro grande; mas olhando fixamente um para o outro; como se no Parse Ahab visse sua sombra projetada, e o Parse, em Ahab, sua matéria abandonada.
E, de certo modo, Ahab – ensimesmado consigo mesmo, como dia após dia, hora após hora e instante após instante se apresentava a seus subordinados – parecia um senhor independente; e o Parse, apenas seu escravo. Ainda assim, ambos pareciam sob um único jugo, com um tirano invisível a conduzi-los; a sombra magra ladeando a viga sólida. Pois, fosse o Parse o que fosse, o sólido Ahab era todo viga e quilha. À primeira luz mais tênue da alvorada, sua voz de aço era ouvida à popa – “Tripular os topos de mastro!” – e durante todo o dia, para além do pôr-do-sol e do crepúsculo, ouvia-se a toda hora, ao soar o sino do piloto, a mesma voz – “O que vedes? – Atenção! Atenção!”.
Mas, no rolar de três ou quatro dias, depois do encontro com o Rachel em busca de seus filhos; e sem jato que houvesse avistado; o velho monomaníaco pareceu desconfiar da fidelidade de sua tripulação; pelo menos, de quase todos, exceção feita aos arpoadores pagãos; pareceu até mesmo se perguntar se Stubb e Flask não estariam fechando voluntariamente os olhos àquilo que ele procurava. Mas, se essas eram realmente suas suspeitas, absteve-se sagazmente de exprimi-las em palavras, embora seus atos parecessem sugeri-las.
Serei eu mesmo o primeiro a avistar a baleia”, disse ele. “Sim! Ahab tem de ganhar o dobrão!”, e com as próprias mãos arrumou um ninho de bolinas encestadas; e mandando um marinheiro subir com um cadernal de uma só roldana para prendê-lo no topo do mastro grande, pegou as duas pontas do cabo passado pela roldana; e, atando uma ao cesto, preparou um pino para a outra ponta, de modo que a amurada a segurasse. Feito isso, ainda com a ponta da corda na mão; e colocando-se ao lado do pino olhou toda a tripulação, transitando de um homem para o outro; demorando o olhar em Daggoo, Queequeg e Tashtego; mas evitando Fedallah; e depois, assentando seus olhos firmes e decididos no primeiro imediato, disse – “Pega a corda, senhor – entrego-a em tuas mãos, Starbuck”. Em seguida, ajeitou-se no cesto e deu ordens para que o içassem até o topo, sendo Starbuck quem afinal amarrou a corda; e depois ficou perto dela. E assim, com uma mão agarrada ao mastaréu, Ahab observou amplamente o mar por milhas e milhas – para frente, para trás, de um lado e de outro –, por todo o vasto horizonte circular dominado de tamanha altura.
Quando trabalha com as mãos em algum lugar alto e isolado do cordame, que pode não ter apoio para os pés, o marinheiro é içado até esse ponto e ali mantido por uma corda; nessas circunstâncias, a extremidade presa ao convés fica sob os cuidados especiais de um homem encarregado de vigiá-la. Pois em tal floresta de cabos movediços, cujas várias relações diferentes nem sempre podem ser infalivelmente reconhecidas no alto pelo que se vê delas do convés; e quando as extremidades dessas cordas no convés vão de poucos em poucos minutos sendo desfeitas de suas amarrações, seria apenas uma fatalidade natural, se, desprovido de um vigia constante, o marinheiro içado, por algum descuido da tripulação, ficasse a esmo e caísse subitamente ao mar. Por isso, o procedimento de Ahab nesse caso não era inusitado; a única coisa estranha era ter escolhido Starbuck, praticamente o único homem que alguma vez ousara opor-se a Ahab com algo próximo do grau mais leve da firmeza – um daqueles também de cuja fidelidade na vigilância ele parecia duvidar um pouco –, era estranho que fosse ele o homem escolhido para vigiar a corda; entregando livremente a vida inteira nas mãos de uma pessoa em quem, a princípio, tão pouco confiava.
Ora, da primeira vez que Ahab foi içado; mal se passaram dez minutos; quando um desses falcões marinhos selvagens, de bico vermelho, que tão amiúde voam de maneira incômoda à volta do topo dos mastros guarnecidos dos baleeiros naquelas latitudes; um daqueles pássaros aproximou-se aos gritos e rodopios de sua cabeça, num emaranhado de círculos indiscerníveis e muito rápidos. Depois disparou a mil pés de altura, reto no ar; e então, descendo em espirais, reapareceu de novo a redemoinhar em torno de sua cabeça.
Mas, com os olhos fitos no horizonte escuro e distante, Ahab parecia não prestar atenção ao pássaro selvagem; nem, de fato, qualquer outro prestaria muita atenção a isso, pois não se tratava de uma circunstância incomum; no entanto, naquele momento, até o olhar menos atento parecia atribuir algum tipo de significado ardiloso a quase toda a cena.
Seu chapéu, seu chapéu, senhor!”, subitamente alertou o marinheiro Siciliano, que, postado no topo do mastro de mezena, ficava logo atrás de Ahab, embora um tanto mais abaixo e com um profundo redemoinho a separá-los.
Mas a asa negra já estava diante dos olhos do velho; o longo bico curvado em sua cabeça: com um grito, o falcão negro arremessou-se para longe com seu troféu.
Uma águia voou três vezes em volta da cabeça de Tarquínio, retirando-lhe o capacete para substituí-lo e, com isso, Tanaquil, a esposa dele, declarou que Tarquínio seria o rei de Roma. Mas foi apenas porque o capacete voltou ao seu lugar que o presságio foi considerado bom. O chapéu de Ahab não lhe foi jamais restituído; o falcão selvagem voou e voou com ele; para muito longe da proa: e desapareceu, afinal; enquanto, no ponto do desaparecimento, se discernia vagamente uma minúscula mancha preta, descendo ao mar daquelas imensas alturas.

Herman Melville, in Moby Dick

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