O jornalismo é uma profissão deveras
divertida e neste momento ele está me levando pelo braço, mais
exatamente é Fernando Sabino, de blusão branco, manga curta, quem
está me levando pelo braço até o velhote rabugento, um sujeito que
se conserva assim meio que por farra, meio que por angústia sincera,
e está sozinho com um copo de uísque na mesa.
“Ô Rubem, fala aqui pro repórter do
Jornal do Brasil o que você acha da personalidade do
aniversariante”, provocou Sabino.
Rubem Braga, que já tinha se deixado
fazer de pele a noite inteira pelos amigos, virou-se para o humilde
repórter JB que ora vos fala, tudo isso tendo acontecido no janeiro
da graça de 1984, e mandou que este eterno foca atrás das sardinhas
da informação escrevesse no bloquinho.
“Anota aí”, disse com a voz mais
grave do seu repertório de assustar o próximo. “O aniversariante
é um doido varrido.”
O jornalismo tem dessas coisas e aqui,
mais uma vez em genuflexo, só posso lhe ser grato por me oferecer
tamanha cena. Lá estava eu reportariando para o Jornal do Brasil
a festa dos 60 anos do psicanalista-doido Hélio Pellegrino, na casa
de sua mulher, Maria Urbana Pentagna, no Jardim Botânico. Ao fundo,
uma plêiade de astros da literatura dançando “ô balancê
balancê” da Gal. Entra na roda, morena, vem ver.
Maria Julieta Drummond de Andrade havia
acabado de chegar de Buenos Aires e era “cantada” por Alfredo
Machado para publicar na Record. Ferreira Gullar criticava o
governador Brizola que, num golpe, encerrara a carreira de seu
“Vargas”, no João Caetano. Otto Lara Rezende, de barba branca,
me contava que o psicanalista-doido não queria dar festa nenhuma,
mas que ele o convencera roubando-lhe o próprio jargão
profissional.
“Você está querendo fugir de quê,
Hélio? Fuja para a frente, deixe os outros gostarem de você. Faça
60 anos com altivez, ora. Até parece que você não é analisado.”
No final do mês, o patrão no JB ainda
me pingaria algum na conta bancária como paga por eu ter passado um
punhado de horas degustando pasta de siri com Flávio Rangel e
relatado ao grande público depois. Um salário razoável para
bebericar vinho branco com Wilson Figueiredo, ver Dina Sfat jogando
os cabelos para trás na pista de dança (“adorei o Shakespeare em
catalão que assisti na Espanha”) e ouvir Pellegrino resenhar os
sessentinha para Sabino.
“Valeu a pena. Investi na amizade, no
capital erótico e não me arrependo. A salvação está em você se
dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não
fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa
tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se
conhece conhecendo o mundo. Somos um fio desse imenso tapete cósmico.
Mas haja saco!”
Fernando Sabino deu uma bolsa a tiracolo
para o aniversariante e, prestes a fazer também seus 60 em outubro,
contava uma história acontecida com o marechal Juarez Távora.
Convidado por militares para uma conspiração aos 60 anos, Távora
negara-se. Aos 60, justificava, fazia-se tudo às claras. Jogo
aberto. Sabino, mineiro típico dos sentimentos retraídos,
concordava ali na roda do quintal. Estava alegre. Achava que os 60
iam jogar ele e o amigo Hélio para fora das sombras das montanhas de
Belo Horizonte. Finalmente o sol do Rio abriria luz sobre suas
cabeças.
Não foi, como se sabe, o que aconteceu.
Pellegrino morreu logo em 1988 e Sabino, depois do mal compreendido
livro sobre Zélia Cardoso, trancafiou-se em casa, assustadoramente
mineiro. Nada disso importa, xô baixo-astral. Hoje é o dia de
comemorar os 20 anos daquela festa de arromba dos literatos mineiros
e a minha sorte jornalístico-existencial de encontrar por perto
Braga e Sabino, autores das crônicas que me fizeram de alguma
maneira caminhar para estar lá e sem as quais eu definitivamente não
estaria aqui – se é que me faço claro e não deixo a emoção
turvar a homenagem.
Lamente-se daquela reunião no Jardim
Botânico apenas a ausência no salão de Paulo Mendes Campos, o mais
ansioso de todos os quatro amigos mineiros. Ele começou a bebemorar
a data por volta das dez da manhã e não pôde prolongar os serviços
pela noite. Perdeu. “Ser brotinho”, ele escreveu num texto
célebre, “é ter horror de gente morta.” Na festa, meninos
serelepes curtindo um com a cara do outro, eles ainda estavam todos
na voz ativa daquela crônica. Ser brotinho é lançar fogo pelos
olhos. E assim o faziam.
“Só um louco procura o psicanalista
Hélio Pellegrino”, dizia, segundo Ferreira Gullar na festa, o
letreiro anunciando os serviços do honorável médico na Belo
Horizonte nos anos 40.
Hélio, aproveitando que o LP de Gal
tinha dado um tempo na vitrola, mandava ver no meio da roda. “A
pedra, o vento, a luz alteada/ o salso mar etéreo, o grito/ do
mergulhão, sob o infinito azul:/ Deus não me deve nada”, recitava
anunciando o livro que estava para lançar.
Nunca mais vi esses doidos geniais ao
vivo, embora suas palavrinhas não tenham parado de pulsar por baixo
de todas estas que acabaram de ser digitadas, e tenho certeza de que
assim pelos tempos e tempos será. Imagino todos reunidos agora numa
daquelas nuvens de branco leitoso que Braga achava ser o do lombinho
no almoço mineiro e o da primavera quando batiam as quatro e meia da
tarde. Tagarelam na nuvem como faziam na festa, zoando da própria
situação. Paulo Mendes Campos, um dos grandes humoristas
brasileiros, certamente já reescreveu o “Ser brotinho” e breve
alguém psicografará o novo texto, agora intitulado “Ser
mortinho”.
“Deus sabe o que faz”, “afinal
descansou”, “é preciso a gente se conformar”, deve estar
dizendo o recém-chegado Sabino, morto dias atrás, citando o
chorrilho de clichés de condolências que relatou num dos verbetes
de Lugares-comuns, um de seus livros mais divertidos. “O que
consola é saber que ele está melhor que todos nós.”
Saí da festa e escrevi a reportagem que
me pedia a pauta do JB. Mas, de tanto ler Sabino, eu desconfiava.
Aquela noite dava uma crônica sobre a amizade, o bom humor e os
delicados mistérios da existência.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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