Houve uma época em que me viciei em
livros de aventuras de guerra, cheguei a ler mais de cem. Quando eu
era menino lia histórias em quadrinhos e, como já disse, livros de
aventuras, romances policiais e de mistério. Nunca achei muita graça
é em ficção científica. Os próprios policiais passei a ler com
cautela, mesmo os melhores, como Dashiell Hammett e Raymond Chandler,
os meus prediletos. Cada leitor tem o seu. Os meus são estes dois.
Quando o Edmund Wilson escreveu em 1944
um ensaio sobre o romance policial, sustentando, para grande
escândalo dos aficionados, que mesmo os melhores eram subliteratura
(a despeito do que quer que Gide tenha dito ou deixado de dizer sobre
Hammett e Simenon), recebeu dezenas de cartas de protesto dos
leitores: você não leu Dorothy Sayers. Ou Nero Wolf. Ou John
Dickson Carr. Ou Erle Stanley Gardner. Ou quem quer que estivesse
fazendo sucesso na época. Teve de voltar ao assunto e reafirmou seu
julgamento. O único a quem concedeu qualidade literária foi
Chandler.
São livros escritos para ser lidos –
mas não mais por mim, pois tenho passatempos melhores. Simenon e
Agatha Christie é que não me pegam mais. Um caso do Bertrand
Russell, contado por um amigo que foi esperá-lo no aeroporto de Nova
York para conduzi-lo a Boston, onde faria umas conferências, define
bem esse tipo de literatura. Na estação de trem, ele comprou três
livros policiais e começou a viagem. Leu o primeiro e o atirou pela
janela; leu o segundo, a mesma coisa; leu o terceiro e também o
jogou fora. Isso ilustra o que vem a ser literatura descartável.
Já os que consideram a crônica também
literatura descartável certamente estão mal informados. A crônica
é um gênero literário com uma tradição que vem dos quinhentistas
portugueses, como Diogo do Couto, desembarca no Brasil com Pero Vaz
de Caminha, passa por Machado de Assis e chega até nossos dias com
Rubem Braga. Como se vê, uma linhagem das mais nobres, a que
qualquer um se orgulharia de pertencer.
A confusão vem provavelmente de o termo
durante algum tempo ter servido para designar em jornal as seções
especializadas: a crônica política, social, esportiva – enfim,
tudo o que escreviam os que hoje são mais propriamente denominados
colunistas.
Entre um romance e outro, escrevi e
continuo escrevendo centenas de crônicas, contos e histórias
curtas. Tudo é genericamente chamado de crônica. Como se diz das
doenças: não sendo aguda, é crônica...
Gosto daquela definição de Mário de
Andrade: conto é tudo aquilo que o autor chama de conto. Para certas
pessoas, não sendo romance, não vale. Lembro-me que um dia
Guimarães Rosa me telefonou e perguntou o que eu estava fazendo. Eu
disse que estava tentando escrever uma peça de teatro. E ele, meio
paternal:
– Não faça biscoitos, faça
pirâmides.
Fiquei algum tempo encafifado com aquilo,
sem saber se a obra literária se impunha também pelo gênero e pelo
tamanho, além da qualidade. Acabei concluindo que Voltaire, Machado
de Assis, Jorge Luis Borges e tantos outros fizeram biscoitos.
Hemingway fez tanto sucesso com seus biscoitos, como aquela admirável
novela Old man and the sea (O velho e o mar), que acabou
ganhando o prêmio Nobel. Ninguém é obrigado a ser Tolstói na
vida, como o próprio Hemingway pensava. Nem julgado por ser
biscoiteiro ou faraó.
O sucesso de uma obra literária costuma
ser uma decorrência meio eventual, como o de qualquer atividade
artística, muitas vezes independente da qualidade. Não posso negar
que sou bastante lido – o que devo talvez ao fato de escrever numa
linguagem que permite vários planos de leitura, abrangendo uma gama
larga de leitores, que vai do professor ao aluno, do pai ao filho, do
patrão ao empregado. Mas nem por isso me sinto realizado. No dia em
que me sentir serei um homem acabado, como no livro de Papini.
Seria ridículo querer ser hoje um
escritor como imaginava aos vinte anos. O mundo mudou, e eu com ele.
A literatura continua, só que concebida em outros termos. Os meios
de comunicação e de formulação literária evoluíram, e
continuarão evoluindo sempre. Os gêneros têm fronteiras cada vez
mais flexíveis e são intercomunicáveis, a ponto de escapar às
classificações, apesar do esforço da crítica especializada,
dissecando obras literárias como cadáveres nas salas de anatomia.
Procuro exercer o meu ofício literário
fazendo com que a expressão não se subordine à comunicação, mas
se harmonize com ela: que seja compatível com os meios de
comunicação de nosso tempo. O difícil é atingir o perfeito
equilíbrio entre uma coisa e outra. Custa muito esforço, embora não
pareça.
O elogio que mais me tocou foi feito por
Maria Urbana, mulher de Hélio Pellegrino, que um dia tentou contar
uma pequenina história minha a uma amiga e não conseguiu. “Tive
que ler a história para ela”, me disse. “Parece fácil
reproduzir, mas é como um passo de dança, você vai imitar e quebra
a cara.”
Escrevo antes de mais nada para mim mesmo
– aquilo que eu gostaria de ler. Mas não escrevo só para mim. Nem
para meus amigos, nem para meia dúzia de leitores, mas para o maior
número de pessoas. Escrevo para me comunicar, e o que mais me alegra
é quando essa comunicação se estabelece.
Só que poucas vezes chego a tomar
conhecimento – e essa é uma das aflições de um escritor. Quanta
coisa já escrevi que, mesmo tendo sido lida por muita gente, jamais
saberei o efeito que causou.
Mas às vezes fico sabendo, e de maneira
bem surpreendente. Soube um dia de um casal que estava se separando e
na hora de dividir as coisas de casa o marido pegou um livro meu e
disse que aquilo era dele, fazia questão de levar. A mulher
protestou, dizendo que era seu, ela é que havia comprado. Ele se
espichou na cama, começou a ler o livro e de repente desatou a rir.
Ela se ofendeu: não podia admitir que, num momento tão importante
da vida deles, o marido tivesse coragem de ficar rindo como um
idiota. Ele pediu desculpas e leu para ela o trecho. Ela também
começou a rir e em pouco os dois passaram a ler juntos na cama e
acabaram na cama sem o livro. E desistiram de se separar, conforme me
escreveram contando.
Reconheço que parece história
inventada, como numa crônica minha.
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula
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