segunda-feira, 24 de maio de 2021

Mãe Meiré

Tio Anagnosti, o velho, os saúda e pergunta se vossas senhorias teriam prazer em vir até sua casa para uma refeição. O açougueiro vai castrar os porcos; Kyra Marulia, a mulher do velho, cozinhará as partes. Celebrar-se-á também o aniversário de seu neto Minas, que é hoje.
É um prazer entrar na casa de um camponês cretense. Tudo que lá existe é patriarcal: a lareira, a lamparina de óleo, os jarrões alinhados contra a parede, num buraco aberto no muro, o barril de água fresca. Dos travões que sustentam o teto pendem vasos achatados com plantas aromáticas: salva, hortelã-pimenta, salsa, romarinho.
No fundo, três ou quatro degraus de madeira levam à galeria onde está o leito de dossel, e em cima os santos ícones com a vela sempre acesa. A casa lhe parece vazia, e, no entanto tem todo o indispensável — pois a esse ponto o homem autêntico precisa de poucas coisas para viver.
O dia estava magnífico e o sol de outono era de uma grande doçura. Sentamo-nos diante da casa, no pátio, sob uma oliveira carregada de frutos. Entre as folhas prateadas o mar brilhava longe, plácido. Nuvens vaporosas passavam sobre nós. Cobriam o sol, descobriam-no: dir-se-ia que a terra, ora triste ora alegre, respirava.
No fundo do jardinzinho, num pequeno cercado, o porco castrado gritava de dor, e nos ensurdecia. Da lareira chegava-nos o aroma de suas partes, que estavam sendo assados na brasa.
Falávamos das coisas eternas: dos cereais, das vinhas, da chuva. Éramos obrigados a gritar: o velho notável não ouvia bem.
Tinha, dizia ele, os ouvidos muito orgulhosos. A vida desse cretense havia sido reta e calma como a árvore na ravina abrigada dos ventos.
Nascera, crescera, casara-se. Tivera filhos e netos. Muitos morreram, mas outros viveram; a descendência estava assegurada.
O velho cretense se recordava dos tempos antigos, da época dos turcos, lembrou palavras de seu pai, os milagres que aconteceram naquele tempo em que as gentes temiam a Deus e tinham fé.
Eu, por exemplo. Nasci de um milagre. Sim, de um milagre. E quando lhes contar como foi, vocês dirão: “Senhor, Misericórdia!” e subirão ao mosteiro da Virgem para lhe acender uma vela.
Fez o sinal da cruz e começou tranquilamente com a sua voz doce:
Naquele tempo havia em nossa aldeia uma turca rica — maldita seja ela! Um belo dia ela fica grávida, a miserável, e à hora do parto chega. Colocam-na numa cadeira e ela fica a zurrar como uma mula por três dias e três noites. Mas a criança não nascia. Uma amiga dela — maldita seja também — deu-lhe um conselho: “Tzafer Hanum, tu devias chamar a mãe Meiré para te socorrer.” Mãe Meiré é o nome que os turcos dão à Virgem. “Chamar aquela?” Zurrou a cadela Tzafer. Logo aquela? Prefiro morrer! “Mas as dores aumentaram.”
Passou-se ainda um dia e uma noite. Zurrava sempre e não paria.
Que fazer? Não podia mais suportar as dores. Então começou a chamar: “Mãe Meiré!” Mãe Meiré!” ela chamava o quanto podia, mas as dores não passavam e a criança não vinha. “Ela não te houve, lhe disse sua amiga. Ela não deve saber turco. Chame-a pelo seu nome cristão.” — “Virgem dos Rumis! Gritou então a cadela, Virgem dos rumis!” Mas não adiantava nada, e as dores aumentavam. “Tu não a chamas certo, Tzafer Hanum, disse ainda a amiga. Tu não a chamas certo e é por isso que ela não vem.” Então, aquela grande cadela infiel, vendo o perigo, deixou sair um grande berro: “Virgem Santa!”E, de uma só vez, eis a criança que escorrega de seu ventre como uma enguia. Isso foi num domingo, e no domingo seguinte minha mãe começou a sentir as suas dores. Sentiu muitas também, a minha pobre mãe; sentiu muitas. Zurrava ela também, coitada. Gritava:
Virgem Santa! Virgem Santa!” Mas o parto não vinha. Meu pai, sentado no chão no meio do pátio, tinha tanta pena que não podia beber nem comer. Queixava-se da Virgem. “Da outra vez vocês viram”. Aquela cadela da Tzafer Hanum chamou-a e ela veio correndo. Agora...” No quarto dia meu pai não aguentou mais. Sem esperar mais nada, passou a mão no seu forcado e tocou-se para o mosteiro da Virgem. Ela que nos ajude! Chega lá, entra sem nem fazer o sinal da cruz, tão grande era o seu furor, passa a tranca na porta e pára diante do ícone: “Afinal, Virgem Santa, grita ele. Minha mulher Krinio, você a conhece, que lhe trás azeite todas as semanas, que lhe acende velas; pois minha mulher Krinio te chama há três dias e três noites, e você não houve? Ficou surda? É claro que se fosse uma cadela como a Tzafer, você iria correndo ajudar. Mas, para a minha mulher, a cristã, você ficou surda, você não a escuta! Pois bem, não fosse você a Virgem Santa eu lhe daria umas, com esse bastão que está aqui!” dito isso, sem ajoelhar, volta-se para sair.
Nesse momento o ícone começa a estalar, como se estivesse quebrando. Os ícones fazem assim quando estão fazendo milagres, fiquem sabendo. Meu pai compreende logo, volta-se e se põe de joelhos e faz o sinal da cruz: “Peguei, Virgem Santa, grita ele, faz de conta que não lhe disse nada!” Ele acaba de entrar na aldeia de volta quando lhe deram a boa notícia: “Felicidades, Kostandi, tua mulher pariu e é um menino.” Era eu, o velho Anagnosti. Mas nasci com os ouvidos orgulhosos. Meu pai, vejam bem, havia blasfemado ao chamar a Virgem de surda. “Ah! É assim, deve ter dito ela. Pois bem, vou fazer com que seu filho fique um pouco surdo, para você deixar de blasfemar!”
E o tio Anagnosti se persignou.
E isso não é nada — disse ele, — pois ela podia ter-me feito cego ou débil mental, ou corcunda ou então — que Deus me guarde — ela podia ter-me feito mulher. A surdez não é nada, e eu me prosterno diante das graças da Virgem santíssima!
Encheu nossos copos:
Que ela nos ajude! — disse ele erguendo o seu.
À tua saúde, tio Anagnosti. Faço votos para que você viva cem anos e conheça os seus bisnetos!
O velho bebeu seu copo de um gole só e enxugou o bigode.
Não meu filho — disse. — chega. Conheci meus netos, e isso me basta. Não se deve pedir demais. Minha hora chegou. Estou velho, meus amigos, tenho as energias esgotadas, e não é por falta de vontade de viver, mas porque não posso mais fazer filhos: e, sem isso, que vale a pena fazer na vida?
Ele encheu os copos de novo, apanhou as nozes e os figos secos envolvidos em folhas de loureiro e dividiu-os conosco.
Tudo que eu tinha dei a meus filhos — disse ele. — já estivemos na miséria. Sim senhor, na miséria; mas isso é a última de minhas preocupações. Deus é grande!
Deus é grande, tio Anagnosti — disse Zorba, no ouvido do velho. — Deus é grande... Mas nós somos pequenos!
O velho notável franziu a testa.
Espere aí, não o maltrate assim, amigo — disse ele com severidade. — não o maltrate assim! Ele também conta conosco, coitado!
Nesse momento, silenciosa, submissa, apareceu à mãe Anagnosti trazendo num prato de barro as partes do porco e um jarrão de cobre com o vinho. Pousou sobre a mesa o que trazia, ficou em pé, cruzou os braços e abaixou os olhos.
Eu sentia repugnância em provar esse prato, mas, por outro lado, tinha vergonha de recusar. Zorba olhou-me com o canto dos olhos e sorriu maliciosamente.
É a carne mais saborosa que existe, patrão — afirmou. — prove para ver.
O velho Anagnosti deu um sorriso.
É isso mesmo, é isso mesmo; prove para ver. Parecem miolos! Quando o Príncipe George passou pelo mosteiro, lá no alto da montanha, os monges haviam preparado um banquete real com pratos de carne para todos. E para o Príncipe havia apenas um prato de sopa. O Príncipe pega a colher e mexe a sopa: “Ervilhas? Ele pergunta surpreso. Ervilhas?” — “Coma, meu Príncipe, disse-lhe o velho abade. Coma e depois falaremos.” O Príncipe prova uma colher, duas, três, raspa o prato e se delicia. “O que é essa maravilha? Disse ele. Que ervilhas deliciosas! Parecem miolos!” — “não são ervilhas, Príncipe, responde o abade. Não são ervilhas. É que nós fizemos castrar todos os galos das redondezas!”
Rindo, o velho espetou com o garfo um pedaço das partes do porco.
Um prato de Príncipe! — disse ele. — abra a boca.
Abria-a, e ele serviu-me a garfada.
Encheu de novo os copos, e bebemos a saúde de seu neto.
Os olhos do avô brilharam.
Que deseja que seu neto venha a ser, tio Anagnosti? — perguntei-lhe. — diga-o, para que nós também possamos desejar.
que posso eu querer, meu filho. Eh! Que ele tome o bom caminho, que se torne um homem honrado, um bom chefe de família, que tenha também seus filhos e netos, e que uma dessas crianças se pareça comigo. Para que os velhos o digam ao vê-lo: “Olhe só, como ele se parece com o velho Anagnosti! Que ele repouse em paz, foi um bom camarada!”

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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