terça-feira, 4 de maio de 2021

H

Às margens do rio Eufrates, ao pé de uma colina extensa, Berosus mais uma vez observava a abóbada celeste, a parte superior do ovo dentro do qual todos nos encontrávamos. Como poderia decifrar aquela pele de cor mutante, de caminhos sempre outros, se não tinha como sair daquele ovo? Sabia que só pelo lado de fora da casca conseguiria ver com precisão os mistérios daquela porção do estranho círculo. Berosus já sabia tratar-se de um círculo. Tinha certeza de que as interpretações dos sacerdotes Marduk e Uruk, de tradição suméria, estavam equivocadas. Caso todos estivéssemos planando sobre uma reta, apoiados nas costas dos deuses, como aqueles sacerdotes teimavam em afirmar, não haveria mudanças no céu. As estrelas continuariam sempre no mesmo lugar, seriam sempre as mesmas, e os navegantes não atracariam com notícias sobre diferentes luas, noites que não acabam e sóis que não se põem. Para tudo isso ocorrer, Berosus sabia, era preciso o círculo. Mais uma vez, ficou horas observando a clareza da concavidade celeste e, mais uma vez, voltou desapontado para casa. Como poderia ler, na casca interna do ovo, os códigos secretos, mas essenciais, que os deuses nos enviavam? Ele sabia ser o escolhido para o cumprimento daquela missão; sabia que, se não a realizasse, algum desastre se abateria sobre a Caldeia. Já tinha, até aquele momento, anotado a existência de cinco astros errantes: Samas, Nabu, Delebat, Neberu e Salbatanu. Samas era o guardião, o Rei do Ano, e atravessava o céu num barco. Nascia ao leste todos os dias, pela manhã, brilhava e comandava os outros príncipes errantes, e descansava a oeste, todo fim de tarde. Comandava as colheitas, as cheias e as quatro estações. O filho de Marduk, Nabu, que aparecia tanto de manhã como à tarde, era o deus nervoso, por isso considerado protetor das águas e da escrita. Afinal, as águas se movimentavam geniosamente de acordo com sua imprevisível atividade pelos céus, e as letras daquela nova escrita em forma de cunha teimavam em reagir sempre de forma diferente ao que o escriba previa. Nabu regia as mudanças e devia, certamente, estar anunciando alguma coisa ruim. Delebat, astro gigantesco que só aparecia durante a escuridão e que parecia estar tão próximo de Nabu, era o deus do amor. Sob seus auspícios, a colheita era farta e os casamentos felizes. Já o astro que trilhava a rota constante através dos céus, Neberu, guiava os aventureiros e navegadores, indicando-lhes o caminho certo e mais cheio de bons augúrios. Era o deus da benevolência e do otimismo, o deus da lei, que Berosus não temia, mas, ao contrário, em quem confiava para salvar a ele e a todos os caldeus das ameaças de Nabu, o nervoso, e de Salbatanu, o deus da guerra, aquele de cor avermelhada. Juntos, Nabu e Salbatanu planejavam certamente assaltar a Caldeia, o Egito e a Suméria. Tudo isso viria sob a forma de uma grande enchente, que duraria quarenta dias e quarenta noites. Como Berosus transmitiria isso à população? Como diria a todos nós, contrariando Marduk e Uruk, que vivíamos sobre um espaço esférico, ovalado, sem ter onde nos apoiar, ou, o que é ainda pior, que vivíamos dentro desse espaço e que, se não nos defendêssemos, nos afogaríamos sem piedade num líquido viscoso, presos para sempre à condição de filhotes antes do nascimento? Como poderíamos nascer? Berosus sabia que a única forma de nos livrarmos dessa maldição seria a saída do interior daquela casca ou a aceitação inevitável de que vivíamos numa esfera e precisávamos nos proteger. Com o amparo sagrado de Nabu, o temeroso, deus da escrita, Berosus tentou proclamar ao povo caldeu a semiesfera côncava, sob a qual devíamos aceitar nossa existência. A enchente viria, era urgente que nos protegêssemos e que Berosus escondesse suas tábuas e avisasse Antíoco sobre o lugar do esconderijo. O astrônomo veio até mim e, juntos, pois eu era talvez o único a acreditar fielmente nele e a visualizar a esfera côncava do céu, pensamos numa maneira de convencer o povo, tão afeito às superstições do hábito e às previsões de Uruk e Marduk, que o manipulavam ardilosamente para manterem a hegemonia absoluta sobre o trono do templo. Minha impressão era a de que as letras em cunha, de tão difícil decifração e tão resistentes à inscrição na pedra, deveriam ser substituídas por símbolos mais retilíneos e definidos, que possibilitassem uma compreensão mais imediata por parte de todos. Pela primeira vez, Berosus concordou comigo. Era preciso encontrar um sinal que indicasse a semiesfera. Cavoucamos uma reta vertical sobre a pedra macia e definimos que aquela era a representação de Delebat e de Samas, nossos protetores, que olhavam por nós contra Nabu e Salbatanu. Outra reta, paralela àquela primeira, seria o signo do povo, os caldeus, ameaçados e necessitados de proteção. Uma reta horizontal, ligando aquelas duas, éramos nós mesmos, os enviados, e, acima de tudo, a fé na esfera, que nos aconselhava a construir uma arca, antes que os astros errantes entrassem em alinhamento e nos conduzissem à eterna asfixia dentro do ovo. Aquele sinal, as duas retas verticais unidas pela reta horizontal, era o som aspirado, o sopro vindo dos deuses, o signo da redenção e da aliança. Espalharíamos aquela letra por toda a Babilônia, nos templos, casas e banhos, e estaríamos sempre prontos a explicar e fazer soar aquele som aspirado e forte, símbolo do hemisfério e da arca da aliança. Muitos séculos mais tarde, os manuscritos escondidos por Berosus no monastério de Amorium seriam encontrados pelo califa Mutasim, que os repassaria a um grego conhecido como Tales de Mileto, astrônomo que reconheceria naquele texto a previsão e o acerto das interpretações de Berosus, que já reconhecera na esfera semicôncava o que Tales viria a chamar de “hemisfério”, em homenagem àquele símbolo que juntos havíamos criado e que, em nome da aspiração de sua pronúncia, veio a se chamar letra H. Hoje em dia, sobreviventes que somos daquela enchente, e já do lado de fora da casca do ovo, não sabemos mais utilizar em nosso favor a aspiração dessa letra, como representação que é do sopro divino, e, em nossa descrença, eliminamos seu som e seu sinal de aliança, utilizando-a somente como adorno inútil, em palavras de resto tão fundamentais como “homem”, “hoje” e “horizonte”.

Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto

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