Às margens do rio Eufrates, ao pé de
uma colina extensa, Berosus mais uma vez observava a abóbada
celeste, a parte superior do ovo dentro do qual todos nos
encontrávamos. Como poderia decifrar aquela pele de cor mutante, de
caminhos sempre outros, se não tinha como sair daquele ovo? Sabia
que só pelo lado de fora da casca conseguiria ver com precisão os
mistérios daquela porção do estranho círculo. Berosus já sabia
tratar-se de um círculo. Tinha certeza de que as interpretações
dos sacerdotes Marduk e Uruk, de tradição suméria, estavam
equivocadas. Caso todos estivéssemos planando sobre uma reta,
apoiados nas costas dos deuses, como aqueles sacerdotes teimavam em
afirmar, não haveria mudanças no céu. As estrelas continuariam
sempre no mesmo lugar, seriam sempre as mesmas, e os navegantes não
atracariam com notícias sobre diferentes luas, noites que não
acabam e sóis que não se põem. Para tudo isso ocorrer, Berosus
sabia, era preciso o círculo. Mais uma vez, ficou horas observando a
clareza da concavidade celeste e, mais uma vez, voltou desapontado
para casa. Como poderia ler, na casca interna do ovo, os códigos
secretos, mas essenciais, que os deuses nos enviavam? Ele sabia ser o
escolhido para o cumprimento daquela missão; sabia que, se não a
realizasse, algum desastre se abateria sobre a Caldeia. Já tinha,
até aquele momento, anotado a existência de cinco astros errantes:
Samas, Nabu, Delebat, Neberu e Salbatanu. Samas era o guardião, o
Rei do Ano, e atravessava o céu num barco. Nascia ao leste todos os
dias, pela manhã, brilhava e comandava os outros príncipes
errantes, e descansava a oeste, todo fim de tarde. Comandava as
colheitas, as cheias e as quatro estações. O filho de Marduk, Nabu,
que aparecia tanto de manhã como à tarde, era o deus nervoso, por
isso considerado protetor das águas e da escrita. Afinal, as águas
se movimentavam geniosamente de acordo com sua imprevisível
atividade pelos céus, e as letras daquela nova escrita em forma de
cunha teimavam em reagir sempre de forma diferente ao que o escriba
previa. Nabu regia as mudanças e devia, certamente, estar anunciando
alguma coisa ruim. Delebat, astro gigantesco que só aparecia durante
a escuridão e que parecia estar tão próximo de Nabu, era o deus do
amor. Sob seus auspícios, a colheita era farta e os casamentos
felizes. Já o astro que trilhava a rota constante através dos céus,
Neberu, guiava os aventureiros e navegadores, indicando-lhes o
caminho certo e mais cheio de bons augúrios. Era o deus da
benevolência e do otimismo, o deus da lei, que Berosus não temia,
mas, ao contrário, em quem confiava para salvar a ele e a todos os
caldeus das ameaças de Nabu, o nervoso, e de Salbatanu, o deus da
guerra, aquele de cor avermelhada. Juntos, Nabu e Salbatanu
planejavam certamente assaltar a Caldeia, o Egito e a Suméria. Tudo
isso viria sob a forma de uma grande enchente, que duraria quarenta
dias e quarenta noites. Como Berosus transmitiria isso à população?
Como diria a todos nós, contrariando Marduk e Uruk, que vivíamos
sobre um espaço esférico, ovalado, sem ter onde nos apoiar, ou, o
que é ainda pior, que vivíamos dentro desse espaço e que, se não
nos defendêssemos, nos afogaríamos sem piedade num líquido
viscoso, presos para sempre à condição de filhotes antes do
nascimento? Como poderíamos nascer? Berosus sabia que a única forma
de nos livrarmos dessa maldição seria a saída do interior daquela
casca ou a aceitação inevitável de que vivíamos numa esfera e
precisávamos nos proteger. Com o amparo sagrado de Nabu, o temeroso,
deus da escrita, Berosus tentou proclamar ao povo caldeu a semiesfera
côncava, sob a qual devíamos aceitar nossa existência. A enchente
viria, era urgente que nos protegêssemos e que Berosus escondesse
suas tábuas e avisasse Antíoco sobre o lugar do esconderijo. O
astrônomo veio até mim e, juntos, pois eu era talvez o único a
acreditar fielmente nele e a visualizar a esfera côncava do céu,
pensamos numa maneira de convencer o povo, tão afeito às
superstições do hábito e às previsões de Uruk e Marduk, que o
manipulavam ardilosamente para manterem a hegemonia absoluta sobre o
trono do templo. Minha impressão era a de que as letras em cunha, de
tão difícil decifração e tão resistentes à inscrição na
pedra, deveriam ser substituídas por símbolos mais retilíneos e
definidos, que possibilitassem uma compreensão mais imediata por
parte de todos. Pela primeira vez, Berosus concordou comigo. Era
preciso encontrar um sinal que indicasse a semiesfera. Cavoucamos uma
reta vertical sobre a pedra macia e definimos que aquela era a
representação de Delebat e de Samas, nossos protetores, que olhavam
por nós contra Nabu e Salbatanu. Outra reta, paralela àquela
primeira, seria o signo do povo, os caldeus, ameaçados e
necessitados de proteção. Uma reta horizontal, ligando aquelas
duas, éramos nós mesmos, os enviados, e, acima de tudo, a fé na
esfera, que nos aconselhava a construir uma arca, antes que os astros
errantes entrassem em alinhamento e nos conduzissem à eterna asfixia
dentro do ovo. Aquele sinal, as duas retas verticais unidas pela reta
horizontal, era o som aspirado, o sopro vindo dos deuses, o signo da
redenção e da aliança. Espalharíamos aquela letra por toda a
Babilônia, nos templos, casas e banhos, e estaríamos sempre prontos
a explicar e fazer soar aquele som aspirado e forte, símbolo do
hemisfério e da arca da aliança. Muitos séculos mais tarde, os
manuscritos escondidos por Berosus no monastério de Amorium seriam
encontrados pelo califa Mutasim, que os repassaria a um grego
conhecido como Tales de Mileto, astrônomo que reconheceria naquele
texto a previsão e o acerto das interpretações de Berosus, que já
reconhecera na esfera semicôncava o que Tales viria a chamar de
“hemisfério”, em homenagem àquele símbolo que juntos havíamos
criado e que, em nome da aspiração de sua pronúncia, veio a se
chamar letra H. Hoje em dia, sobreviventes que somos daquela
enchente, e já do lado de fora da casca do ovo, não sabemos mais
utilizar em nosso favor a aspiração dessa letra, como representação
que é do sopro divino, e, em nossa descrença, eliminamos seu som e
seu sinal de aliança, utilizando-a somente como adorno inútil, em
palavras de resto tão fundamentais como “homem”, “hoje” e
“horizonte”.
Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto
Nenhum comentário:
Postar um comentário