Quando me instalei no trem, dois irmãos
haviam passado e já partido. Desapreciaram a viagem e dispersaram-se
no início do percurso. O vagão, por certo, trepidava muito e
baldearam-se para incógnita estação. Num carro de segunda classe,
se nada sobra, nada falta, mas nem tudo é justo. Eu tive e não tive
mais dois irmãos. Esse mais ou menos gerou em mim um compromisso de
viver sob quaisquer suspeitas. Nasci mais ou menos órfão.
Sonhei-me um tomate, maduro e pequeno,
preso num cacho, com outros cinco, todos verdes. Sonhava um
escândalo: ser um tomate. Sabia estar em sonho, mas não me
acordava. Se tentava fugir, os irmãos verdes impediam. Não pediam,
mas adivinhavam minha angústia. E eu, tomate, não possuía olhos
para chorar ou boca para falar. Meu horror era de ser colhido e
degolado. Fazia um esforço imenso para enverdecer. Verde, minha vida
seria mais longa. As sementes tremiam, debatiam para se livrarem de
minhas grades. O alívio veio com a manhã e deparei com a chuva
penteando o quintal. A mulher de sentinela, já na beira do fogão,
soprava as cinzas das brasas.
O irmão, degustador de vidro, sabia ler.
Decifrava as palavras e seus escuros. E escrevia, por isso, pensava,
— suspeitei. Escrever é também pensar, eu desconfiava. Um dia lhe
pedi que me ensinasse a rabiscar a palavra tomate. Ele pegou o lápis,
reparou sua ponta e me disse:
“É preciso afiar bem a grafite. Só
com a ponta do lápis exageradamente fina se pode fazer a palavra
tomate”. Assustei-me. Para escrever a palavra tomate meu irmão
necessitava de um punhal, concluí. Descobri meu irmão irmanado a
mim e suspeitando nosso exílio diante do tomate nas mãos da mulher.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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