domingo, 2 de maio de 2021

Afiar bem a grafite

Quando me instalei no trem, dois irmãos haviam passado e já partido. Desapreciaram a viagem e dispersaram-se no início do percurso. O vagão, por certo, trepidava muito e baldearam-se para incógnita estação. Num carro de segunda classe, se nada sobra, nada falta, mas nem tudo é justo. Eu tive e não tive mais dois irmãos. Esse mais ou menos gerou em mim um compromisso de viver sob quaisquer suspeitas. Nasci mais ou menos órfão.
Sonhei-me um tomate, maduro e pequeno, preso num cacho, com outros cinco, todos verdes. Sonhava um escândalo: ser um tomate. Sabia estar em sonho, mas não me acordava. Se tentava fugir, os irmãos verdes impediam. Não pediam, mas adivinhavam minha angústia. E eu, tomate, não possuía olhos para chorar ou boca para falar. Meu horror era de ser colhido e degolado. Fazia um esforço imenso para enverdecer. Verde, minha vida seria mais longa. As sementes tremiam, debatiam para se livrarem de minhas grades. O alívio veio com a manhã e deparei com a chuva penteando o quintal. A mulher de sentinela, já na beira do fogão, soprava as cinzas das brasas.
O irmão, degustador de vidro, sabia ler. Decifrava as palavras e seus escuros. E escrevia, por isso, pensava, — suspeitei. Escrever é também pensar, eu desconfiava. Um dia lhe pedi que me ensinasse a rabiscar a palavra tomate. Ele pegou o lápis, reparou sua ponta e me disse:
É preciso afiar bem a grafite. Só com a ponta do lápis exageradamente fina se pode fazer a palavra tomate”. Assustei-me. Para escrever a palavra tomate meu irmão necessitava de um punhal, concluí. Descobri meu irmão irmanado a mim e suspeitando nosso exílio diante do tomate nas mãos da mulher.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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