Depois de velho visitei a casa onde
nasci. Casa dos tempos de riqueza do meu pai. Estava como nova,
pintada, cuidada, a mesma cara, a varanda, o jardinzinho ao lado da
varanda com trepadeira, árvores no quintal que não poderiam ser as
mesmas. Bati à porta, atendeu uma senhora de avental, a empregada.
Expliquei. “Eu nasci nesta casa faz muito tempo, antes de você
nascer, no dia 15 de setembro de 1933. Estou com saudade desta casa
que não cheguei a conhecer. Saí dela antes de saber as coisas.
Agora eu queria muito entrar nela, para vê-la pela primeira vez.
Será que a patroa permitiria que eu a visitasse?” Ela se abriu num
sorriso e pediu que esperasse e foi contar para a patroa sobre aquele
visitante inesperado. Veio a patroa, uma senhora com cabelos brancos
como os meus, com um sorriso. Eu a abracei e agradeci-lhe por haver
cuidado tão bem da minha casa. Fez-me entrar. Observei tudo
atentamente. Aquele espaço era muito velho, mais velho que eu.
Imaginei meu pai e minha mãe ainda jovens, meus irmãos pequenos...
Onde teria sido o lugar do piano Pleyel? As casas novas são mais
confortáveis que as antigas. Elas não têm nada a ser consertado:
torneiras que pingam, pias entupidas, cupins, fechaduras
enferrujadas, goteiras, madeiras que a água apodreceu...
As casas novas não precisam de carinho.
Estão lá para a função de serem habitadas. São escravas que não
falam. Mudas. Não falam porque não têm estórias para contar.
Dentro delas a gente só pensa em conveniências, conforto e
modernidades. Frias. Ainda não foram impregnadas pelos cheiros
humanos: o cheiro do suor, dos sabonetes, dos perfumes, do fumo, do
fogão de lenha, da comida, do jasmim, do tempo.
Por razões religiosas eu comecei a fumar
cachimbo quando vivi nos Estados Unidos. Trouxe o prazer comigo.
Fumava enquanto trabalhava. As espirais de fumaça têm um poder
desrealizador que abre espaços para a fantasia. O perfume do
cachimbo impregnou o meu escritório. Meu filho, já adulto, me
confessou que, menino, quando eu viajava e ele ficava com saudades,
entrava no meu escritório e ficava lá assentado, sozinho, sentindo
o cheiro do meu cachimbo...
Agora me digam: que cheiro de casa nova
tem o poder de curar saudade? As casas novas são desinfetadas, têm
cheiro de pinho sol... Por isso elas são más educadoras —
paralisam a imaginação. Não são assim as casas velhas. São como
os velhos, têm alma, ficam doentes, pedem para ser cuidadas, estão
misturadas com o corpo daqueles que viveram nelas.
Comovo-me com as casas abandonadas, à
espera da demolição. Fico a imaginar o momento quando alguém
disse: “Vou construir uma casa!”. E se pôs a sonhar e a fazer
planos. “Haveremos de ser muito felizes nessa casa”, ele dizia
para sua mulher. A construção de uma casa se faz sob a ilusão da
eternidade. A ilusão é que, protegida pelas paredes, a vida fica
protegida contra a corrosão do tempo. Mas aí o tempo passa, os
filhos crescem, os pais ficam velhos, os filhos se casam, mudam para
outras casas, a casa se esvazia e fica assombrada pelos fantasmas que
moram na solidão. O jeito, então, é vendê-la. Com a casa vendida
vão muitas ilusões. Fiquei a pensar nas ilusões do meu pai e de
minha mãe. Passei então ao quarto onde nasci.
Naquela manhã a Mema reuniu os sobrinhos
e os levou para passear, longe da casa. Eles não entenderiam o que
estava para acontecer. Na verdade, eles não deveriam entender. Na
casa o movimento era incomum, mulheres entrando e saindo de um
quarto, água fervendo no fogão, o marido andando como um bobo de um
lado para o outro. Até que se ouviu o choro de uma criança. O choro
anunciava o nascimento. A parteira anunciou: “É um menino!”.
Minha mãe ficou desapontada. Já tinha três filhos homens. Tinha
rezado muito para que na sua barriga estivesse uma menina. Toda mãe
sonha com uma menina como companheira e enfermeira, para quando os
dias forem maus. Quando a Mema voltou com os meninos, eles foram
informados pelo pai que um irmãozinho havia chegado — sem explicar
nem como nem de onde. Era o dia 15 de setembro de 1933. Assim foi: no
desejo de minha mãe, eu deveria ter sido uma menina... Ela mesma me
disse, muito tempo depois, carinhosamente. Aconteceu naquele quarto…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Nenhum comentário:
Postar um comentário