domingo, 18 de abril de 2021

Viver sem culpa por sermos felizes

Eu vagava sobre o compasso do pecado. Tudo por escutar as frestas das janelas. Menino pecador e sem remorso, eu suplicava perdão, sem fé, caminhando entre dúvidas. Não, não amava a Deus sobre todas as coisas. Amava meu amor mais que a mim mesmo. Outra vez embaraçava-me nos abraços. A felicidade destrancava um paladar ácido de culpa que só a alma degusta.

Meu pai destemia o tempo. Seus olhos nos confirmavam isso. Ele derramava um olhar bêbado sobre nossa alegria. Tudo vencia como os ponteiros do relógio assaltam o tempo, continuamente. Media tudo, minuto a minuto e segundo a si mesmo. Cheguei a desejar meu pai um relojoeiro, interrompendo as horas de todos os relógios. Quem sabe, um dia, cheio de medo do sempre, ele nos outorgaria viver sem culpa por sermos felizes? Meu pensamento desdobrava a lona cinza do caminhão — sempre encostada num canto da sala — e cobria meu pai por inteiro.

Se a chuva chovia mansa o dia inteiro, o amor da mãe se revelava com mais delicadeza. O tempo definia as receitas. Na beira do fogão ela refogava o arroz. O cheiro do alho frito acordava o ar e impacientava o apetite. A couve, ela cortava mais fina que a ponta da agulha que borda mares em ponto cheio. Depois, mexia o angu para casar com a carne moída, salpicada de salsinha, conversando com o caldo do feijão. Tudo denunciava o seu amor. Nós, meninos, comíamos devagar, tomando sentido para cada gosto. Ela desconfiava que matar nossa fome era como nos pedir para viver. A comida descia leve como o andar do gato da minha irmã.

Exige-se longo tempo e paciência para enterrar uma ausência. Aquele que se foi ocupa todos os vazios. Como água, também a ausência não permite o vácuo. Ela se instala mesmo entre as pausas das palavras. Na morte, a ausência ganha mais presença. É substantivo e concreto tudo aquilo que permanece. Daí, os mortos passearem entre nós. Jamais imaginei seu espírito transfigurado em fruto.

O pai viajava por distantes estradas. Partia nas madrugadas — secas ou frias — deixando um barulho de poeira seca por onde rodava. A lembrança de seu olhar nos ameaçava pelos gestos da esposa. A certeza de que fôramos lembrados por ele — mesmo por remorso — exalava das fatias de mortadela que incensavam os cômodos da casa, em seu retorno. Seu carinho, eu suspeitava, aparecia pontuado de pimenta de um reino quase só imaginado.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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