Continuei a encontrar Severo na estrada,
quase sempre no mesmo lugar, às segundas-feiras. Minha mãe havia
melhorado e Belonísia havia retomado sua rotina de me acompanhar à
feira. Meu pai também costumava ir com Zezé, mas na maioria das
vezes preferia continuar labutando com a terra, para ver se dava
alguma coisa. Procurava por um frescor de umidade, uma “ventura”,
como ele mesmo dizia. Cavava e lançava sementes. As roças haviam
migrado para mais perto do rio, e chegou um tempo em que o próprio
leito, sem água em alguns trechos, passou a ser utilizado para
plantar. E mesmo no leito tinha porções de terra que não serviam
para o plantio, eram por demais argilosas. O que vingava ia para a
mesa. Uns poucos quiabos ou abóboras miúdas. A mandioca não
prestava, as raízes apodreciam com o excesso de umidade. E se
ficasse no sequeiro naquele tempo de estiagem nem chegava a se
desenvolver.
Severo nos seguia para a cidade, era de
conhecimento dos nossos pais. As filhas de Tonha também iam, e ele
passou a ser visto como um protetor. Belonísia estava mais retraída,
parecia perceber que naquele período as atenções dele estavam
voltadas para mim. Por algumas vezes tentou se desobrigar de me
acompanhar, principalmente quando o buriti não rendia as duas sacas.
Pedia para ajudar nosso pai a colher taboa e alimentava os animais
que sobreviviam. Ela manejava o facão melhor que eu, e confesso que
invejava sua habilidade. Brandia os instrumentos com uma força que
admirava, ao mesmo tempo em que fazia me sentir fraca para a lida com
a terra. Com sua disposição, Belonísia se aproximava mais de meu
pai, passava a lhe fazer companhia, junto com meu irmão, e
participava das decisões, embora Zeca sempre lembrasse que ela era
mulher, e lhe negasse determinadas tarefas. Mas isso não a abatia.
Era como se estivesse sempre esperando a oportunidade para demonstrar
sua força, seus conhecimentos e sua destreza.
Apesar desse afastamento sutil, sentia
que Severo a entusiasmava nas brincadeiras de jarê, já que a nossa
convivência passou a ser de novo mais constante. Havíamos
estreitado os laços dormentes devido às adversidades que vivíamos
naquela estiagem. Observava os movimentos brandos que Belonísia
fazia para chamar a atenção de Severo que, apesar de demonstrar
grande apreço por ela, estava de forma mais constante comigo. Talvez
a pequena diferença de idade que havia entre nós para dois
adolescentes representasse um hiato. Talvez fossem apenas as
afinidades que descobrimos nos caminhos para a feira: a vontade de
estudar, a casa de dona Firmina se tornou minúscula para o que
ansiávamos; a vontade de deixar a fazenda que, assim como nele, foi
despertada em mim.
Como o buriti estava levando alimento
para nossa mesa, diversificando nossa dieta de beiju de jatobá,
ninguém inquiria sobre o tempo que eu passava na mata, na beira dos
marimbus colhendo os frutos, que começavam a rarear com o término
da safra. À medida que ficavam mais escassos, precisávamos de mais
tempo para encontrá-los. Nesse tempo, me aproximava mais das margens
do rio Santo Antônio, me aproximava mais da roça de meus tios e de
Severo. Ficávamos cada vez mais juntos, rindo ou divergindo, ou
apenas em silêncio. Até que as mãos passaram a se tocar para
impedir um gesto, ou apenas por pilhéria. Eu sentia sua respiração,
por vezes calma, em outros momentos intensa, dependendo do teor das
suas manifestações. Até que passei a ouvir os batimentos de seu
coração diante do silêncio que vinha da tranquilidade da mata, sem
água, sem folhas farfalhando, por horas sem pássaros, que não
tinham alimento. Sua mão já não tocava apenas a minha, tocava meu
ombro. Eu me permitia empurrar levemente seu peito. E quando
estávamos cansados, apenas deitávamos em qualquer lugar da margem
do rio para sentir o vento, que só para contrariar nem chegava a
soprar. Mas quando soprava, lançava sobre nossos corpos a terra
seca. Eu passei minhas mãos para limpar seu rosto, ele fez o mesmo
com o meu, e um dia deixei que sua boca tocasse em minha boca, e
nesse dia apenas lembrei do meu sentimento quando o vi beijando
Belonísia. Não retornei bem para casa, era como se tivesse traído
minha irmã. Mas não suportei muito tempo esse sentimento de
traição, subverti, porque tudo o que estava sentindo era grandioso.
Voltei para a beira do rio só por voltar, o buriti já tinha
terminado. Saía sem avisar e ouvia reclamações de minha mãe, que
queria saber por onde andava. Ainda não podia dizer a verdade, dizia
apenas que estava com algumas das meninas que moravam mais distantes.
Tudo foi crescendo de forma tão pujante
que era como se meu corpo se guiasse sozinho, e Severo agia da mesma
forma na trama em que estávamos enredados. Naquela terra mesmo,
entranhada da secura da falta de chuva, deixamos nossos suores para
que lhe servisse de alívio. O silêncio da ausência dos pássaros,
dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por
nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças
mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber
a vida.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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