E de repente nós nos lembramos das damas
antigas, dos velhos romances: como guardavam coisas nos seios! Dali
tiravam o punhal, a flor, o veneno, maços de cartas fatais, lenços,
bicicletas. Ah, é talvez por isto que as mulheres de hoje perderam
tanto de seu mistério!
Levam apenas o revólver na bolsa, e nada
mais.
E também como suspiravam as damas
antigas! Suspiravam diligentemente até os últimos filmes italianos
de antes da Primeira Grande Guerra. Depois, apenas me lembro de Greta
Garbo, em um de seus primeiros filmes, dar um suspiro e dizer
Music... Mas ainda essa não tinha mais aquele belo movimento de
busto que acompanhava o suspiro. Para dizer a verdade, não tinha
busto.
E nem ao menos desmaiam mais, essas
senhoras de hoje. Quando o fazem, é apenas por mau estado de saúde.
Antigamente, o desmaio era um gesto, uma atitude, um recurso normal
de mímica; quase que fazia parte da conversação.
Não que fossem falsos desmaios. Não;
eram sinceros e naturais. As moças aprendiam a desmaiar como a tocar
piano, a bordar, a falar francês. Era uma prenda doméstica.
Ainda haverá moças prendadas?
Há muitas beldades hoje brilhando nas
colunas sociais ou posando nuas ou semi, nas revistas do gênero.
Deus as guarde. Mas mulher mesmo é Lucíola. Aquela, sim! É
completa: mulher, anjo e demônio, pois assim é que interessa.
Se quiserem o nome todo direi que não
sei; apenas posso informar que ela não tem telefone. Seu último
endereço era em Santa Teresa. Notícias suas os interessados podem
obter lendo o romance de José de Alencar.
A primeira vez que a vemos é passando em
um carro puxado por dois cavalos: “Uma encantadora menina...
brincava com um leque de penas escarlates... nessa atitude cheia de
abandono... perfil suave e delicado.”
Depois a encontramos com um vestido
cinzento com orlas de veludo castanho... “linda moça... talhe
esbelto e de suprema elegância” que contemplava as nuvens com
“doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua
castidade...”
Mas chega o momento em que “os lábios
finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam...
havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes das narinas
que tremiam... e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila
negra”. Então ela “arqueava, enfunando a rija carnação de um
colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento
voluptuoso... às vezes um tremor espasmódico percorria-lhe todo o
corpo”. É então que Lucíola... “despedaçava os frágeis laços
que prendiam-lhe as vestes”... e “a mais leve resistência
dobrava-se sobre si mesma como uma cobra, e os dentes de pérola
talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda... as
trancas luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros... uma
nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés... e eu vi aparecer
aos meus olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua
completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé
lascivo as uvas de Corinto”.
Cortemos a cena aqui; sou um
cronista-família, Mas, além de ver Lucíola mais de uma vez nesses
transportes, o leitor a verá também lívida, ou a gargalhar, ou
caída em profunda distração, ou titilante de ironia e sarcasmo, ou
ébria de champanha e coroada de verbenas, rutilante de beleza...
“sua formosura tinha nesse momento uma ardência fosforescente”...
ou “imóvel e recolhida... absorta no seu êxtase religioso”...
ou “com uma dignidade meiga e nobre”, ou com “um sorriso
pálido... nos lábios sem cor... sublime êxtase iluminou a suave
transparência de seu rosto”.
Não, não se fazem mais Lucíolas como
antigamente.
Rubem Braga, in Recado de primavera
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