sábado, 17 de abril de 2021

Lucíola era assim

E de repente nós nos lembramos das damas antigas, dos velhos romances: como guardavam coisas nos seios! Dali tiravam o punhal, a flor, o veneno, maços de cartas fatais, lenços, bicicletas. Ah, é talvez por isto que as mulheres de hoje perderam tanto de seu mistério!
Levam apenas o revólver na bolsa, e nada mais.
E também como suspiravam as damas antigas! Suspiravam diligentemente até os últimos filmes italianos de antes da Primeira Grande Guerra. Depois, apenas me lembro de Greta Garbo, em um de seus primeiros filmes, dar um suspiro e dizer Music... Mas ainda essa não tinha mais aquele belo movimento de busto que acompanhava o suspiro. Para dizer a verdade, não tinha busto.
E nem ao menos desmaiam mais, essas senhoras de hoje. Quando o fazem, é apenas por mau estado de saúde. Antigamente, o desmaio era um gesto, uma atitude, um recurso normal de mímica; quase que fazia parte da conversação.
Não que fossem falsos desmaios. Não; eram sinceros e naturais. As moças aprendiam a desmaiar como a tocar piano, a bordar, a falar francês. Era uma prenda doméstica.
Ainda haverá moças prendadas?
Há muitas beldades hoje brilhando nas colunas sociais ou posando nuas ou semi, nas revistas do gênero. Deus as guarde. Mas mulher mesmo é Lucíola. Aquela, sim! É completa: mulher, anjo e demônio, pois assim é que interessa.
Se quiserem o nome todo direi que não sei; apenas posso informar que ela não tem telefone. Seu último endereço era em Santa Teresa. Notícias suas os interessados podem obter lendo o romance de José de Alencar.
A primeira vez que a vemos é passando em um carro puxado por dois cavalos: “Uma encantadora menina... brincava com um leque de penas escarlates... nessa atitude cheia de abandono... perfil suave e delicado.”
Depois a encontramos com um vestido cinzento com orlas de veludo castanho... “linda moça... talhe esbelto e de suprema elegância” que contemplava as nuvens com “doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade...”
Mas chega o momento em que “os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam... havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes das narinas que tremiam... e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra”. Então ela “arqueava, enfunando a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso... às vezes um tremor espasmódico percorria-lhe todo o corpo”. É então que Lucíola... “despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes”... e “a mais leve resistência dobrava-se sobre si mesma como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda... as trancas luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros... uma nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés... e eu vi aparecer aos meus olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé lascivo as uvas de Corinto”.
Cortemos a cena aqui; sou um cronista-família, Mas, além de ver Lucíola mais de uma vez nesses transportes, o leitor a verá também lívida, ou a gargalhar, ou caída em profunda distração, ou titilante de ironia e sarcasmo, ou ébria de champanha e coroada de verbenas, rutilante de beleza... “sua formosura tinha nesse momento uma ardência fosforescente”... ou “imóvel e recolhida... absorta no seu êxtase religioso”... ou “com uma dignidade meiga e nobre”, ou com “um sorriso pálido... nos lábios sem cor... sublime êxtase iluminou a suave transparência de seu rosto”.
Não, não se fazem mais Lucíolas como antigamente.

Rubem Braga, in Recado de primavera

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