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Na nossa família, sempre que nasce uma
criança não se fecham as janelas. É o inverso do que faz o resto
da aldeia: mesmo no pico do calor, as outras mães enrolam os bebés
em panos espessos, emparedando-se no escuro do quarto. Em nossa casa,
não: portas e janelas permanecem escancaradas até ao primeiro banho
do recém-nascido. Essa desabrida exposição é, afinal, uma
proteção: a nova criatura fica impregnada de luzes, ruídos e
sombras. E é assim desde o nascer do Tempo: apenas a Vida nos
defende do viver.
Naquela manhã de janeiro de 1895, as
janelas que deixara abertas fizeram crer que uma criança acabara de
nascer. Uma vez mais, sonhei que era mãe e um cheiro de
recém-nascido impregnava toda a casa. Aos poucos, fui escutando o
sincopado arrastar de uma vassoura. Não era apenas eu que
despertava. Aquele doce rumor acordava a casa inteira. Era a nossa
mãe que se ocupava da limpeza do pátio. Fui à porta e fiquei a
vê-la, elegante e magra, num arqueado balanço como se dançasse e,
assim, se fosse tornando poeira.
Os portugueses não entendem o nosso
cuidado de varrer em redor das casas. Para eles, apenas faz sentido
varriscar o interior dos edifícios. Não lhes passa pela cabeça
vassourar a areia solta do quintal. Os europeus não compreendem:
para nós, o fora ainda é dentro. A casa não é o edifício. É o
lugar abençoado pelos mortos, esses habitantes que desconhecem
portas e paredes. É por isso que varremos o quintal. O meu pai nunca
esteve de acordo com esta explicação, a seu ver demasiado
rebuscada.
— Varremos a areia por uma outra
razão, bem mais prática: nós queremos saber quem entrou e saiu
durante a noite.
Naquela manhã a única pegada era a de
um simba, esses felinos que, na calada da noite, farejam as nossas
capoeiras. A mãe foi conferir as galinhas. Nenhuma faltava. O
insucesso do felino somava-se ao nosso fracasso: fosse visto o bicho,
e seria prontamente caçado. A pele pintalgada das ginetas era
cobiçada como sinal de prestígio. Não havia prenda melhor para
agradar aos grande chefes. Sobretudo aos comandantes do exército
inimigo, que se ornamentavam até perderem a forma humana. É para
isso que servem as fardas: para afastar o soldado da sua humanidade.
A vassoura corrigiu, firme, a noturna
ousadia. A memória do felino se apagou em segundos. Depois a mãe
afastou-se pelos atalhos para recolher água no rio. Fiquei a vê-la
desvanecendo-se na floresta, elegante e hirta nos seus panos
garridos. Eu e a mãe éramos as únicas mulheres que não vestiam os
sivanyula, os tecidos de cascas de árvore. As nossas vestes,
compradas na cantina do português, cobriam o nosso corpo, mas
expunham-nos à inveja das mulheres e à cobiça dos homens.
Quando chegou ao rio a mãe bateu as
palmas, pedindo licença para se aproximar. Os rios são moradias de
espíritos. Debruçada na margem, espreitou a berma para se precaver
da emboscada de um crocodilo. Todos na aldeia acreditam que os
grandes lagartos têm “donos” e obedecem apenas ao seu mando.
Chikazi Makwakwa recolheu a água, a boca do cântaro virada para a
foz, para não contrariar a corrente. Quando se preparava para
regressar a casa, um pescador ofereceu-lhe um belo peixe que ela
embrulhou num pano que trazia atado à cintura.
Já perto de casa sucedeu o imprevisto.
Do espesso mato irrompeu um grupo de soldados VaNguni. Chikazi recuou
uns passos enquanto pensava: escapei dos crocodilos para entrar na
boca de monstros ainda mais ferozes. Desde a guerra de 1889 que as
tropas de Ngungunyane tinham deixado de rondar pelas nossas terras.
Durante meia dúzia de anos saboreámos a Paz pensando que duraria
para sempre. Mas a Paz é uma sombra em chão de miséria: basta o
acontecer do Tempo para que desapareça.
Os soldados rodearam a nossa mãe e logo
se aperceberam de que ela os entendia quando falavam em shizulu.
Chikazi Makwakwa nascera em terras do sul. O seu idioma de infância
era muito próximo da língua dos invasores. A mãe era uma
mabuingela, esses que caminham à frente para limparem o
orvalho do capim. Aquele era o nome que os invasores davam às gentes
que usavam para abrir os caminhos na savana. Eu e os meus irmãos
éramos produto dessa mistura de histórias e culturas.
Passados anos, os intrusos regressavam
com a mesma ameaçadora arrogância. Reconfirmando medos antigos,
aqueles homens cercavam a minha mãe com a estranha embriaguez que os
adolescentes sentem apenas pelo facto de serem muitos. As costas
tensas de Chikazi sustinham, com vigor e elegância, o carrego da
água sobre a cabeça. Assim exibia a sua dignidade contra a ameaça
dos estranhos. Os soldados entenderam a afronta e sentiram, ainda
mais viva, a urgência de a humilhar. De pronto derrubaram a bilha e
festejaram, aos gritos, o modo como ela se quebrou de encontro ao
chão. E riram-se, vendo a água encharcar o corpo magro daquela
mulher. Depois, os militares não precisaram de esforço para lhe
rasgar as vestes, havia muito transparentes e coçadas.
— Não me façam mal —
implorou. — Estou grávida.
— Grávida? Com toda essa idade?
Espreitaram a pequena proeminência sob
os panos, onde ela secretamente guardava o ofertado peixe. E, de
novo, a dúvida lhe foi cuspida no rosto:
— Grávida? Você? De quantos meses?
— Estou grávida de 20 anos.
Foi o que lhe apeteceu dizer: que os
filhos nunca tinham saído de dentro de si. Que ela guardava no
ventre todos os cinco filhos. Mas conteve-se. O que fez foi esgueirar
as mãos por entre os panos em busca do embrulhado peixe. Os soldados
ficaram olhando o modo como ela, por baixo da capulana, percorria os
lugares secretos do seu corpo. Sem que ninguém desse conta, com a
mão esquerda segurou a proeminente espinha dorsal do peixe e usou-a
para rasgar o pulso da mão direita. Deixou que o sangue escorresse
e, depois, entreabriu as pernas, como se estivesse parindo. Foi
retirando o peixe de debaixo dos panos como se estivesse emergindo
das suas entranhas. Depois, ergueu o peixe nos braços cobertos de
sangue e proclamou: — Eis o meu filho! Já nasceu o meu menino!
Os soldados VaNguni recuaram, apavorados.
Aquela não era uma simples mulher. Era uma noyi, uma
feiticeira. E não havia descendência mais sinistra que ela pudesse
ter gerado. Um peixe era, para os ocupantes, um animal tabu. Ao
interdito bicho se juntava, num único instante, a mais grave das
impurezas: sangue de mulher, essa sujidade que polui o Universo. Esse
óleo espesso e escuro escorreu-lhe pelas pernas até obscurecer a
terra toda em volta.
O relato deste episódio perturbou as
hostes dos inimigos. Diz-se que muitos soldados desertaram, receosos
do poder da feiticeira que paria peixes.
Mia Couto, in Mulheres de cinzas (As Areias do Imperador)
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