segunda-feira, 12 de abril de 2021

Desenterradas estrelas

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Na nossa família, sempre que nasce uma criança não se fecham as janelas. É o inverso do que faz o resto da aldeia: mesmo no pico do calor, as outras mães enrolam os bebés em panos espessos, emparedando-se no escuro do quarto. Em nossa casa, não: portas e janelas permanecem escancaradas até ao primeiro banho do recém-nascido. Essa desabrida exposição é, afinal, uma proteção: a nova criatura fica impregnada de luzes, ruídos e sombras. E é assim desde o nascer do Tempo: apenas a Vida nos defende do viver.
Naquela manhã de janeiro de 1895, as janelas que deixara abertas fizeram crer que uma criança acabara de nascer. Uma vez mais, sonhei que era mãe e um cheiro de recém-nascido impregnava toda a casa. Aos poucos, fui escutando o sincopado arrastar de uma vassoura. Não era apenas eu que despertava. Aquele doce rumor acordava a casa inteira. Era a nossa mãe que se ocupava da limpeza do pátio. Fui à porta e fiquei a vê-la, elegante e magra, num arqueado balanço como se dançasse e, assim, se fosse tornando poeira.
Os portugueses não entendem o nosso cuidado de varrer em redor das casas. Para eles, apenas faz sentido varriscar o interior dos edifícios. Não lhes passa pela cabeça vassourar a areia solta do quintal. Os europeus não compreendem: para nós, o fora ainda é dentro. A casa não é o edifício. É o lugar abençoado pelos mortos, esses habitantes que desconhecem portas e paredes. É por isso que varremos o quintal. O meu pai nunca esteve de acordo com esta explicação, a seu ver demasiado rebuscada.
Varremos a areia por uma outra razão, bem mais prática: nós queremos saber quem entrou e saiu durante a noite.
Naquela manhã a única pegada era a de um simba, esses felinos que, na calada da noite, farejam as nossas capoeiras. A mãe foi conferir as galinhas. Nenhuma faltava. O insucesso do felino somava-se ao nosso fracasso: fosse visto o bicho, e seria prontamente caçado. A pele pintalgada das ginetas era cobiçada como sinal de prestígio. Não havia prenda melhor para agradar aos grande chefes. Sobretudo aos comandantes do exército inimigo, que se ornamentavam até perderem a forma humana. É para isso que servem as fardas: para afastar o soldado da sua humanidade.
A vassoura corrigiu, firme, a noturna ousadia. A memória do felino se apagou em segundos. Depois a mãe afastou-se pelos atalhos para recolher água no rio. Fiquei a vê-la desvanecendo-se na floresta, elegante e hirta nos seus panos garridos. Eu e a mãe éramos as únicas mulheres que não vestiam os sivanyula, os tecidos de cascas de árvore. As nossas vestes, compradas na cantina do português, cobriam o nosso corpo, mas expunham-nos à inveja das mulheres e à cobiça dos homens.
Quando chegou ao rio a mãe bateu as palmas, pedindo licença para se aproximar. Os rios são moradias de espíritos. Debruçada na margem, espreitou a berma para se precaver da emboscada de um crocodilo. Todos na aldeia acreditam que os grandes lagartos têm “donos” e obedecem apenas ao seu mando. Chikazi Makwakwa recolheu a água, a boca do cântaro virada para a foz, para não contrariar a corrente. Quando se preparava para regressar a casa, um pescador ofereceu-lhe um belo peixe que ela embrulhou num pano que trazia atado à cintura.
Já perto de casa sucedeu o imprevisto. Do espesso mato irrompeu um grupo de soldados VaNguni. Chikazi recuou uns passos enquanto pensava: escapei dos crocodilos para entrar na boca de monstros ainda mais ferozes. Desde a guerra de 1889 que as tropas de Ngungunyane tinham deixado de rondar pelas nossas terras. Durante meia dúzia de anos saboreámos a Paz pensando que duraria para sempre. Mas a Paz é uma sombra em chão de miséria: basta o acontecer do Tempo para que desapareça.
Os soldados rodearam a nossa mãe e logo se aperceberam de que ela os entendia quando falavam em shizulu. Chikazi Makwakwa nascera em terras do sul. O seu idioma de infância era muito próximo da língua dos invasores. A mãe era uma mabuingela, esses que caminham à frente para limparem o orvalho do capim. Aquele era o nome que os invasores davam às gentes que usavam para abrir os caminhos na savana. Eu e os meus irmãos éramos produto dessa mistura de histórias e culturas.
Passados anos, os intrusos regressavam com a mesma ameaçadora arrogância. Reconfirmando medos antigos, aqueles homens cercavam a minha mãe com a estranha embriaguez que os adolescentes sentem apenas pelo facto de serem muitos. As costas tensas de Chikazi sustinham, com vigor e elegância, o carrego da água sobre a cabeça. Assim exibia a sua dignidade contra a ameaça dos estranhos. Os soldados entenderam a afronta e sentiram, ainda mais viva, a urgência de a humilhar. De pronto derrubaram a bilha e festejaram, aos gritos, o modo como ela se quebrou de encontro ao chão. E riram-se, vendo a água encharcar o corpo magro daquela mulher. Depois, os militares não precisaram de esforço para lhe rasgar as vestes, havia muito transparentes e coçadas.
Não me façam mal — implorou. — Estou grávida.
Grávida? Com toda essa idade?
Espreitaram a pequena proeminência sob os panos, onde ela secretamente guardava o ofertado peixe. E, de novo, a dúvida lhe foi cuspida no rosto:
Grávida? Você? De quantos meses?
Estou grávida de 20 anos.
Foi o que lhe apeteceu dizer: que os filhos nunca tinham saído de dentro de si. Que ela guardava no ventre todos os cinco filhos. Mas conteve-se. O que fez foi esgueirar as mãos por entre os panos em busca do embrulhado peixe. Os soldados ficaram olhando o modo como ela, por baixo da capulana, percorria os lugares secretos do seu corpo. Sem que ninguém desse conta, com a mão esquerda segurou a proeminente espinha dorsal do peixe e usou-a para rasgar o pulso da mão direita. Deixou que o sangue escorresse e, depois, entreabriu as pernas, como se estivesse parindo. Foi retirando o peixe de debaixo dos panos como se estivesse emergindo das suas entranhas. Depois, ergueu o peixe nos braços cobertos de sangue e proclamou: — Eis o meu filho! Já nasceu o meu menino!
Os soldados VaNguni recuaram, apavorados. Aquela não era uma simples mulher. Era uma noyi, uma feiticeira. E não havia descendência mais sinistra que ela pudesse ter gerado. Um peixe era, para os ocupantes, um animal tabu. Ao interdito bicho se juntava, num único instante, a mais grave das impurezas: sangue de mulher, essa sujidade que polui o Universo. Esse óleo espesso e escuro escorreu-lhe pelas pernas até obscurecer a terra toda em volta.
O relato deste episódio perturbou as hostes dos inimigos. Diz-se que muitos soldados desertaram, receosos do poder da feiticeira que paria peixes.

Mia Couto, in Mulheres de cinzas (As Areias do Imperador)

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