Nos seus devaneios sobre a infância,
Bachelard se reencontra com remédios que se tornaram obsoletos,
remédios que tinham nomes poderosos, nomes que faziam parte de suas
potências curativas. Bastava ouvir o nome para se sentir meio
curado. A leitura de Bachelard me levou de volta aos remédios
antigos... Lembrei-me da Emulsão de Scott. Quem teria sido esse
senhor Scott? O rótulo da garrafa dizia que o senhor Scott era um
homem que conhecia os segredos curativos dos peixes. Lá está a
figura de um homem carregando às suas costas um peixe enorme, do seu
tamanho, um bacalhau. Quem toma Emulsão de Scott ganha a saúde dos
peixes. Fiquei com tanta saudade que fui à farmácia e comprei um
vidro, pois a emulsão ainda sobrevive para atender à saudade dos
velhos. Em casa abri o vidro e oh! desapontamento. Seu maravilhoso
horrível cheiro original havia sido substituído por um cheiro
infantil adocicado de morangos! Mas que têm os morangos, delicadas
frutinhas da horta, a ver com os mares profundos onde nadam os
bacalhaus? Voltei à farmácia. Felizmente ainda há os originais.
Vejo-me menino, é o mês de julho, mês do frio, mês de tomar
Emulsão de Scott. Minha mãe chega com uma colher cheia do líquido
pastoso branco de gosto e cheiro horríveis em uma mão, e a metade
de uma laranja na outra. A laranja era para consertar o gosto e o
cheiro...
Resolvi fazer uma pesquisa. Fui à
Farmácia Carcajon, minha vizinha, à procura dos remédios velhos.
Os atendentes, meus amigos, me ajudaram na pesquisa. Rum Creosotado.
Rum Creosotado é poesia. “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo
faceiro que o senhor tem ao seu lado. E no entretanto acredite: quase
morreu de bronquite. Salvou-o o Rum Creosotado”. A poesia torna
eternas as lembranças... Essas rimas se encontravam em todo bonde.
Para passar o tempo enquanto viajava a gente ia lendo e decorando. Os
bondes não mais existem, as rimas não mais se lêem. Limonada
purgativa. Ah! Coisa terrível. Aplicada a quem estava com dor de
barriga produzia uma limpeza apocalíptica no intestino. Muitos
apêndices inflamados supuraram por causa da limonada! Nenhuma mulher
podia prescindir do Regulador Xavier, números 1 e 2. De novo, o
nome: Xavier. Os cientistas, inventores dos remédios, tratavam de
perpetuar os seus nomes nos vidros das poções mágicas que
inventavam. Mágicas? Isso mesmo! Até se usava a expressão: “Um
santo remédio!”. Naqueles tempos os remédios tinham qualidades
teológicas, pertenciam ao mundo dos mistérios sagrados. É o caso
da palavra “elixir”. A etimologia muito me tem revelado sobre a
arqueologia das palavras, o que significavam quando do seu
nascimento. Na minha cabeça a palavra “elixir” me transporta
para o mundo das estórias de encantamento. Elixir d’amore!
Emulsão não se aplicaria. Emulsão de amor não soa bem. Por quê?
Não sei. A poesia tem razões que a prosa desconhece. O Dicionário
Webster, meu amigo fiel, me informou que a palavra elixir vem do
árabe el iksir, que significa “pedra filosofal”. Na
alquimia os elixires eram líquidos que tinham o poder de transformar
metais baratos em ouro. E tinham o poder de prolongar a vida
indefinidamente... Elixir Dória. Para quem comeu demais. Umas gotas
pretas, amargas. Na figura da propaganda, um homem de boca aberta, da
qual saía a cabeça de um boi, com chifre e tudo. O Elixir Dória
digeria até cabeça de boi... Eu ainda faço uso de um elixir, o
Elixir Paregórico. Potentíssimo. Ação rápida. Contra cólicas.
Sempre carrego um vidrinho em minhas andanças. Outro elixir era o
Elixir de Inhame Goulart. Quem diria que dos inhames se podem extrair
maravilhas curativas? E, por falar nisso, tinha um remédio com o
nome de Maravilha Curativa. Quem seria capaz de resistir ao poder do
nome? Não sei o que curava, mas que curava, curava... E o
Phimatosan, para tosse? E as pílulas de vida do Dr. Ross,
redondinhas, branquinhas, do tamanho de um caroço de uva? Dizia a
propaganda: “Pequeninas mas resolvem”. Resolvem o quê?
Constipação intestinal, prisão de ventre. Havia os novatos que não
acreditavam, as pílulas eram muito pequenas, e resolviam tomar logo
cinco de uma vez. Ah! Pobres coitados, condenados a passar uma noite
inteira sem dormir, correndo entre a cama e a privada... O Biotônico
Fontoura. O nome está dizendo: bio = vida + tônico = que fortalece.
Remédio que dá vida. Ficou famoso com a estória do Jeca Tatuzinho,
que era um pobre caboclo que morava numa casinha coberta de sapé.
Tomou o Biotônico, ficou forte, derrubou mato, ficou valente, deu
murro em onça, ficou rico, os porcos e galinhas da sua fazenda todos
usavam sapatos, para não terem verminose, fumou charuto. Naqueles
tempos o símbolo da riqueza não era ter BMW, era fumar charuto. Era
comum se encontrar nas lojas e vendas um quadro com duas metades. Na
primeira metade, um magricela, esfarrapado, assentado no chão de um
quarto vazio, cheio de teias de aranhas e ratos, com os dizeres: “Eu
vendi fiado”. Na outra metade, um homem gordo, papada redonda,
assentado numa poltrona, numa loja rica, com burra aberta cheia de
dinheiro, fumando um charuto, com os dizeres: “Eu vendi a
dinheiro”. Os tempos mudaram. Hoje só fica rico quem vende
fiado. Prova disso são os cartões de crédito. Acho que vai chegar
um tempo em que o dinheiro vai desaparecer. O dedo “pai-de-todos”,
importante por seu uso na produção do prazer, vai então perder
suas funções eróticas: não mais terá notas para contar... E
tinha o Xarope de Limão Bravo, Xarope São João, Salicilato de
Bismuto, pílulas de Lussen, pílulas de Erva de Bicho, Violeta de
Genciana. Compare esses nomes potentes com os nomes dos remédios de
agora: Garasone, Lognox, Deiclogenon, Cetroloc, Flixotide, Vioxx (com
dois “x” mesmo...), Celebra, Clo, Efexor XR, Clob-X, Buscopan,
Amaril. Acho que outros nomes, mais poéticos, mais fantasiosos,
teriam mais efeito…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Nenhum comentário:
Postar um comentário