Eu falo demais. Às vezes enquanto estou
falando, falando, falando, chega aquele momento, bem no meio da
conversa, em que percebo que a pessoa do meu lado já não está
prestando atenção. Continua a mover a cabeça, mas os seus olhos
estão completamente anuviados. Está pensando em outra coisa, algo
melhor do que aquilo que tenho para dizer.
Eu poderia discordar dessa hipótese, é
natural. Poderia discordar de tudo. Minha mulher diz que eu seria
capaz de discutir com um abajur. Eu poderia discutir a questão com o
sujeito ao meu lado, mas não há prazer nisto. Ele já não presta
atenção em mim. Está em outro mundo. Um mundo melhor, ao menos na
opinião dele. E eu? Continuo falando, falando, falando. Como um
carro cujo freio de mão está puxado, as rodas travadas, mas que
continua a deslizar na pista.
Gostaria de parar de falar. De fato,
gostaria. Mas as palavras, as frases, as ideias têm uma energia
própria. É impossível simplesmente detê-las, trancar os lábios e
interromper as palavras, bem ali, no meio de uma frase. Há pessoas
que são capazes de fazer isto, eu sei.
Principalmente mulheres.
E quando elas silenciam, isto desperta
culpa em quem se encontra perto delas. Provoca no ouvinte um desejo,
uma profunda necessidade de inclinar-se para a frente, abraçá-las e
dizer, “Lamento”.
Dizer, “Eu te amo.”
Eu daria tudo para ser capaz de fazer
isto, esta bendita parada. Eu a aproveitaria muito bem. Eu pararia de
falar perto das garotas que realmente valem a pena, e elas desejariam
me abraçar, me apertar, me dizer, “Amo você.” E mesmo se no
final elas não o fizessem, o simples fato de quererem teria valido
alguma coisa. Valido muito.
Naquele dia não consigo parar de falar
com um homem chamado Michael. Ele é designer gráfico de um jornal
ultraortodoxo no Brooklyn, e estava viajando de Nova York para
Louisville, no Kentucky, para fazer companhia ao tio na sucá. Ele
não é especialmente próximo ao tio, nem gosta muito especialmente
de Louisville, mas o tio lhe enviou a passagem de presente, e Michael
é louco pelas milhagens dos programas de fidelidade. Ele fará uma
viagem para a Austrália dentro de alguns meses e, com os pontos do
voo para Louisville, poderá obter um upgrade para a classe
executiva. Em voos longos, Michael me diz, a diferença entre
executiva e econômica é como o dia e a noite.
– O que você prefere – pergunto –,
dia ou noite?
Porque eu, habitualmente, sou um tipo da
noite, mas também de dia há algo especial, radiante. De noite é
mais silencioso e fresco, e isto é uma consideração significativa,
ao menos para mim, que vivo em um país quente. Mas de noite, a
pessoa pode se sentir mais solitária se não há alguém ao seu
lado, se é que você me entende.
– Eu não – diz Michael. A voz dele
soa pesada.
– Não sou gay – eu lhe digo, porque
percebo que o deixei tenso. – Sei que toda esta conversa sobre
solidão e noite soa como conversa gay, mas eu não sou. Em todos os
trinta e tantos anos de minha vida só uma vez beijei um homem na
boca, e, assim mesmo, foi meio que por engano. Eu estava no exército,
e, na minha unidade, havia outro soldado chamado Tzlil Druker. Ele
trouxe maconha para a base militar, e me chamou para fumar. Tzlil me
perguntou se eu já tinha fumado alguma vez, e eu disse que sim. Eu
não tinha intenção de mentir, mas simplesmente tenho esta
característica: quando me perguntam algo e eu fico tenso, sempre
digo que sim. Para agradar. É um reflexo que ainda pode me criar um
grande problema. Imaginem que um policial entre no quarto, me veja ao
lado de um cadáver e pergunte: “Você o matou?” Pode acabar mal.
O policial também pode perguntar, suponhamos: “Você é inocente?”
Neste caso, eu me saio bem. Mas cá entre nós, qual é a chance de
um policial perguntar uma coisa dessa?
“Fumamos juntos, Tzlil e eu, e isto foi
uma sensação muito especial. A droga simplesmente calou a minha
boca. Eu não precisava falar para ser. Enquanto fumávamos, Tzlil me
disse que fazia um ano que tinha se separado da namorada. Que fazia
um ano que não beijava uma mulher. Lembro que ele usou esta palavra,
“mulher”. Eu lhe disse que nunca tinha beijado uma mulher. Ou
garota.
“Na boca, quis dizer. No rosto, beijei
muito. Tias e coisa e tal. E Tzlil me olhou e não disse nada, mas vi
que estava surpreso. E então, de repente, nos beijamos. A língua
dele era áspera e azeda, como ferrugem no corrimão da passarela.
Lembro que na época pensei que todas as línguas e beijos que me
aparecessem na vida seriam assim. Que por não ter beijado ninguém
até então, na prática não tinha perdido nada.
“E Tzlil disse, ‘Não sou homo’.
“E eu ri e disse, ‘Mas tem nome de
gay’.
“E foi isso.
“Oito anos depois eu o encontrei, por
acaso, numa lanchonete de húmus; quando o chamei de Tzlil, ele disse
que não se chamava mais assim, que tinha saído do Ministério do
Interior e mudado o nome para Tsachi.
“Espero que não tenha sido por minha
causa.”
Michael, que está sentado ao meu lado,
há tempo já não me ouve. No início pensei que estivesse tenso
porque achou que eu queria dar em cima dele. Depois comecei a
suspeitar que ele, sim, era gay e que se ofendera com a minha
história, que era como se eu dissesse que beijar um homem é
nojento. Mas quando eu o olho nos olhos, não vejo ofensa ou
ansiedade, simplesmente muitos pontos de milhagem se acumulando para
um upgrade, para comissárias mais bonitas, café mais gostoso, mais
espaço para as pernas.
Quando vejo isso, sinto-me culpado.
Não é a primeira vez que vejo isso nos
olhos de pessoas com as quais eu falo – e não estou falando de
mais espaço para as pernas. Estou me referindo a não prestar
atenção, ver que a pessoa está pensando em alguma outra coisa. E
sempre me sinto culpado. Minha mulher me diz que não tenho por que
me sentir assim. Que o fato de eu falar muito é, obviamente, um
pedido de ajuda. Que não importa que palavras eu pronuncie, o que
realmente digo naquele momento é “socorro”. Pense nisso, ela
diz, você grita “socorro” e eles, enquanto isso, pensam em outra
coisa. Se há alguém que deva se sentir culpado, são eles, não
você.
A língua da minha mulher é macia e
agradável. A língua dela é o melhor lugar no mundo. Se fosse um
pouco mais larga e comprida, passaria a morar nela. Eu me enrolaria
nela como um pedaço de peixe em arroz. Se eu pensar com que língua
comecei a beijar e onde cheguei, posso dizer que fiz algo de bom com
essa minha vida. Que também passei por um bom upgrade.
A verdade é que jamais voei na classe
executiva, mas se a diferença entre ela e a econômica é como a
diferença entre a língua da minha mulher e a de Tzahi-Tzlil Druker,
estaria disposto a morar uma semana na sucá mais abominável do
mundo, com o tio mais chato para receber esse tipo de upgrade.
Anunciam que logo pousaremos. Continuo a
falar. Michael continua a não ouvir. O globo terrestre continua a
girar em seu eixo. Mais quatro dias, querida. Daqui a quatro dias
voltarei para você. Daqui a quatro dias poderei novamente ficar
calado.
Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta
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