quinta-feira, 11 de março de 2021

Uma lembrança

          Lembro-me muito bem de Pedro, meu tataraneto, embora não tanto de sua irmã Noêmia, nome dado em minha homenagem. Vejo-o como num filme, brincando na areia com seus bonecos de montar, encaixando todas as peças desde muito pequeno, como se já definisse ali, na infância, que ele viria a ser engenheiro mais tarde.
Essas lembranças do futuro são bem diferentes das lembranças do passado. Quando me recordo de coisas antigas, as imagens aparecem nubladas, recobertas por uma bruma, fazendo com que as coisas pareçam quase não ter acontecido. Ficamos sempre na dúvida, com essas memórias do que já foi, se elas são nossas ou de outra pessoa, se as vimos em algum sonho ou filme e nos perguntamos se elas realmente aconteceram. Elas se mantêm protegidas por uma película de esquecimento, pois o esquecimento só se refere ao passado. Eu, pelo menos, não me recordo de jamais haver esquecido as coisas que ainda vão acontecer. Quanto ao passado — ai de mim —, esqueço mais do que lembro, e muito do que lembro, esqueço no instante seguinte, e quando rememoro essas outras coisas, esqueço de já tê-las esquecido antes.
Minhas lembranças do futuro, entretanto, são perfeitamente nítidas. Vêm precisas e coloridas, sem nunca se misturar com os riscos do esquecimento. Nunca me esqueci de nada que ainda não tenha acontecido e posso, por exemplo, enumerar uma a uma, detalhe por detalhe, todas as peças do quarto de Pedro, seus hábitos e seus brinquedos. Acompanho com gosto o desenvolvimento de sua infância, adolescência, maturidade e só não consigo ainda vê-lo muito bem na velhice. Ele, contudo, apesar de pesquisar com interesse sobre seu passado e de volta e meia ir atrás de fotografias antigas e velhos arquivos, mal consegue saber algo sobre mim. Sua bisavó, ainda viva quando Pedro era adolescente e a quem ele fez inúmeras perguntas a meu respeito, não se recordava de quase nada sobre minha aparência e minha vida.
É uma situação estranha — eu me lembrar tanto dele e ele nada de mim. Não sei bem por quê, dentre todas as memórias que cultivo de meu futuro, as de meu tataraneto são as que mais me preenchem, aquelas com as quais mais me identifico. Gosto de me recordar de outros parentes também, mas com ninguém me divirto tanto quanto com Pedro. Ele parece viver mais dedicado ao passado do que ao seu próprio tempo, quem sabe seja por isso. E também porque faço tudo o que posso para que minha imagem não seja, para ele, como aquelas que vejo nos filmes antigos e nas fotografias desbotadas. Gostaria que ele me visse colorida, vivaz, da mesma forma como eu o conheço. O problema é que sem relatos, sem imagens, ele não tem como lembrar de mim, porque jamais me conheceu. Talvez, no futuro, as pessoas já possam rememorar o que e quem não conheceram. Assim, Pedro poderá me ver aqui, em seu passado, lembrando-me dele e, junto comigo, poderá ver-se a si mesmo vendo-me.
O tempo, afinal, é feito de lembranças. Ou de esquecimentos, não sei. A amnésia de todos que por ele passaram, deixando pedaços espalhados por toda parte. Cada um os recolhe como pode.
Ultimamente, entretanto, tenho me lembrado que Pedro já é pai e percebo que ele não se dedica mais com o mesmo empenho em buscar informações sobre seu passado e tenho reparado que minha própria imagem no espelho tem ficado cada dia mais embaçada. Mesmo assim, tenho certeza de que não vou morrer. Estou, aos poucos, tornando-me, também eu, só uma lembrança.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

Nenhum comentário:

Postar um comentário