Lembro-me muito bem de Pedro, meu
tataraneto, embora não tanto de sua irmã Noêmia, nome dado em
minha homenagem. Vejo-o como num filme, brincando na areia com seus
bonecos de montar, encaixando todas as peças desde muito pequeno,
como se já definisse ali, na infância, que ele viria a ser
engenheiro mais tarde.
Essas lembranças do futuro são bem
diferentes das lembranças do passado. Quando me recordo de coisas
antigas, as imagens aparecem nubladas, recobertas por uma bruma,
fazendo com que as coisas pareçam quase não ter acontecido. Ficamos
sempre na dúvida, com essas memórias do que já foi, se elas são
nossas ou de outra pessoa, se as vimos em algum sonho ou filme e nos
perguntamos se elas realmente aconteceram. Elas se mantêm protegidas
por uma película de esquecimento, pois o esquecimento só se refere
ao passado. Eu, pelo menos, não me recordo de jamais haver esquecido
as coisas que ainda vão acontecer. Quanto ao passado — ai de mim
—, esqueço mais do que lembro, e muito do que lembro, esqueço no
instante seguinte, e quando rememoro essas outras coisas, esqueço de
já tê-las esquecido antes.
Minhas lembranças do futuro, entretanto,
são perfeitamente nítidas. Vêm precisas e coloridas, sem nunca se
misturar com os riscos do esquecimento. Nunca me esqueci de nada que
ainda não tenha acontecido e posso, por exemplo, enumerar uma a uma,
detalhe por detalhe, todas as peças do quarto de Pedro, seus hábitos
e seus brinquedos. Acompanho com gosto o desenvolvimento de sua
infância, adolescência, maturidade e só não consigo ainda vê-lo
muito bem na velhice. Ele, contudo, apesar de pesquisar com interesse
sobre seu passado e de volta e meia ir atrás de fotografias antigas
e velhos arquivos, mal consegue saber algo sobre mim. Sua bisavó,
ainda viva quando Pedro era adolescente e a quem ele fez inúmeras
perguntas a meu respeito, não se recordava de quase nada sobre minha
aparência e minha vida.
É uma situação estranha — eu me
lembrar tanto dele e ele nada de mim. Não sei bem por quê, dentre
todas as memórias que cultivo de meu futuro, as de meu tataraneto
são as que mais me preenchem, aquelas com as quais mais me
identifico. Gosto de me recordar de outros parentes também, mas com
ninguém me divirto tanto quanto com Pedro. Ele parece viver mais
dedicado ao passado do que ao seu próprio tempo, quem sabe seja por
isso. E também porque faço tudo o que posso para que minha imagem
não seja, para ele, como aquelas que vejo nos filmes antigos e nas
fotografias desbotadas. Gostaria que ele me visse colorida, vivaz, da
mesma forma como eu o conheço. O problema é que sem relatos, sem
imagens, ele não tem como lembrar de mim, porque jamais me conheceu.
Talvez, no futuro, as pessoas já possam rememorar o que e quem não
conheceram. Assim, Pedro poderá me ver aqui, em seu passado,
lembrando-me dele e, junto comigo, poderá ver-se a si mesmo
vendo-me.
O tempo, afinal, é feito de lembranças.
Ou de esquecimentos, não sei. A amnésia de todos que por ele
passaram, deixando pedaços espalhados por toda parte. Cada um os
recolhe como pode.
Ultimamente, entretanto, tenho me
lembrado que Pedro já é pai e percebo que ele não se dedica mais
com o mesmo empenho em buscar informações sobre seu passado e tenho
reparado que minha própria imagem no espelho tem ficado cada dia
mais embaçada. Mesmo assim, tenho certeza de que não vou morrer.
Estou, aos poucos, tornando-me, também eu, só uma lembrança.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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