Lembro-me com clareza de todas as minhas
professoras, mas me lembro de uma em particular. Ela se chamava Dona
Ilka.
Curioso: porque escrevi “Dona Ilka” e
não Ilka? Talvez por medo de que ela se materializasse aqui do meu
lado e exigisse o “Dona”, onde se viu tratar professora pelo
primeiro nome, menino? No meu tempo ainda não se usava o “tia”.
Elas podiam ser boas e até maternais, mas decididamente não eram
nossas tias. A Dona Ilka não era maternal. Era uma mulher pequena
com um perfil de passarinho. Um pequeno passarinho loiro. E uma fera.
Eu era um aluno “bem-comportado”. Era
um vagabundo, não aprendia nada, vivia distraído. Mas
comportamento, 10. Por isto até hoje faço verdadeiras faxinas na
memória, procurando embaixo de tudo e em todos os nichos a razão de
ter sido, um dia, castigado pela Dona Ilka.
Alguma eu devo ter feito, mas não
consigo lembrar o quê. O fato é que fui posto de castigo. Que
consistia em ficar de pé num canto da sala de aula, com a cara
virada para a parede. (Isto tudo, já dá para ver, foi mais ou menos
lá pela Idade Média.)* Mas o que eu nunca esqueci foi a Dona llka
ter me chamado de “santinho do pau oco”.
*Dá para ver que o autor está
exagerando e brincando com o leitor. A Idade Média acabou em 1453,
quando a cidade de Constantinopla (hoje Istambul) foi tomada pelos
turcos que impediram a sua utilização pelos europeus, como escala
das caravanas comerciais para o Oriente. Com isso, eles tiveram que
procurar outro caminho para ir às índias, os portugueses
desenvolveram as navegações, acabaram chegando lá por mar em 1498
e descobrindo o Brasil em 1500.
Ser bem-comportado em aula não era uma
decisão minha nem era nada de que me orgulhasse. Era só o meu
temperamento. Mas a frase terrível da Dona Ilka sugeria que a minha
boa conduta era uma simulação.
Eu era um falso. Um santo falsificado!
Não vou dizer que todas as minhas dúvidas existenciais datem do
epíteto da Dona Ilka, mas, depois disso, pelo resto da vida, não
foram poucas as vezes em que um passarinho imaginário com perfil de
professora pousou no meu ombro e me chamou de fingido. Os santinhos
do pau oco passam a vida se questionando.
Já outra professora quase destruiu para
sempre qualquer pretensão minha à originalidade literária. Era
para fazer uma redação em aula sobre a ociosidade, e eu não tinha
a menor ideia do que era ociosidade. Se a palavra fora mencionada em
aula, tinha certamente sido num dos meus períodos de devaneio, em
que o corpo ficava ali, mas a mente ia passear. E então, me achando
formidável, fiz uma redação inteira sobre um aluno que precisa
fazer uma redação sobre a ociosidade sem saber o que é isso, sua
agonia e finalmente sua decisão de fazer uma redação sobre a
ociosidade, etc. A professora chamou a atenção de toda a classe
para a minha redação. Eu era um exemplo de quem acha que com
esperteza pode-se deixar de estudar e por isto estava ganhando um
zero exemplar. Só faltou me chamar de original do pau oco.
Enfim, sobrevivi. No ginásio, todos os
professores eram homens, mas não lembro de nenhuma marca que algum
deles tenha deixado. As relações com as nossas pseudomães, no
primário, eram muito mais profundas. As duas histórias que eu
contei não têm nenhuma importância. Mas olha as cicatrizes.
Luís Fernando Veríssimo, in O santinho
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