Arrependi-me de ter aconselhado aquele
rapaz a inscrever-se no concurso para cobrador de pedágio da ponte
Rio-Niterói. Ele ontem me apareceu murcho, de pescoço vencido:
— Não deu pé.
— Já sei. Exigiram de você análise
estrutural de Camões ou de Guimarães Rosa.
— Não. Mas a concorrência foi de
endoidar. Quase quatro mil candidatos pra setenta e cinco vagas, por
aí o senhor avalia.
— E daí?
— Daí que tinha até professora
querendo trabalhar na ponte, e o coitado de mim, sem diploma, como
havia de me defender?
— Mas, Ermelino, o concurso não foi
para dar aula de como atravessar a ponte. Foi para cobrar pedágio
dos que atravessarem.
— Eu sei, e por isso meti os peitos.
Mas se até as professoras preferem largar de dar aula nas escolas
pra cobrar pedágio na ponte, debaixo daquele solão, por aí se
conclui que a situação não está pra quem nem ao menos é
professor, porque não estudou e mal pôde solancar o bê-á-bá da
vida.
— Às vezes, né? com jeito, você
podia cobrar pedágio muito melhor do que qualquer um atochado de
títulos universitários.
— Também acho, tanto mais que já
trabalhei de guardador, no estacionamento do meu tio, que foi operado
de tracoma, e dei sorte. Nem tinha cogitado do problema.
— Que problema?
— Em festa de jacaré…
— Não entendi.
— Inhambu não entra, o senhor não
sabia? Os caras que têm ensino tiram de letra nas provas. Ou não
tiram? Na prática, sim, é outro samba, mas a tal de teoria é de
doer. Mesmo assim eu não estava ligando muito, e me preparei com o
meu mobralzinho. A questão é que aqui dentro bate uma coisa chamada
coração.
— Continuo não entendendo. Que tem
coração com pedágio?
— Eu ia lá tirar o pão da boca de uma
professora, se foi outra professora que me ensinou a ler? Diga, eu
ia? O azar foi que sentei junto da moça, lá na Escola Técnica, ela
simpatizou comido, a gente levou um papo, fiquei sabendo de sua vida…
— E?
— Não sou de soluçar ouvindo LP de
Orlando Silva, mas que droga, também não sou de pedra. Ela tinha
estudado tantos anos, aprendeu um mundo de troços complicados e
queria, pra melhorar de vida, cobrar pedágio na ponte. De dia. Me
falou que se fosse aprovada ia pedir pra trabalhar na escala de dia.
— Descansar à noite, é lógico.
— Não. De noite era pra estudar, tirar
mais diploma. Eu perguntei a ela se não bastava o diploma de
professora, ela riu e disse que o dela não tinha bastado, quem sabe
se outros, né? Eu então perguntei se queria ser só cobradora, se
não achava preferível cavar um lugar de chefe ou subchefe dos
cobradores. Ela disse que achava muito difícil nomear mulher chefe
ou subchefe, são só cinco lugares de chefe e dez de subchefe, ao
passo que os cobradores são sessenta, ela ficava satisfeita se
pegasse um de cobrador, cobrador já é bem bom, o que que eu achava?
Eu não tive coragem de responder, fiquei com uma bruta vontade de
oferecer meu lugar pra ela, mas que lugar eu tinha, se eu nem fiz
direito a prova, devo ter feito tanta besteira… Acho que até
advogado estava inscrito no concurso, não sei se médico também,
quem sabe? E a moça era joia.
— Bonita?
— Sabe que nem reparei? Era doce, tinha
um jeito de fruta macia, meio machucada porque colheram ela de mau
jeito, e a casca sofria um pouco. Mas ria pra mim com uns dentes tão
certinhos, nem estava chateada porque disputava um lugar daqueles, no
meio de gente humilde.
— Resultado?
— O senhor ainda pergunta? Saí de lá
com o rabo entre as pernas e nunca mais entro em concurso nenhum
neste Rio de Janeiro. Volto logo pra Estrela Dalva, que é minha
terra, onde ninguém tira lugar de ninguém!
Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
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