terça-feira, 9 de março de 2021

Diálogo de Buda e o Pastor

          O sol se deitou, o mar amansou um pouco e as nuvens se dispersaram. A estrela da noite brilhou. Olhei o mar, o céu, e pus-me a pensar... Amar assim alguma coisa, a ponto de tomar a machadinha, cortar-se e sentir a dor... Mas guardei minha emoção.
Mau sistema esse, Zorba! — disse eu sorrindo. — faz-me lembrar uma história que consta da Lenda Dourada. Um dia, um ermitão viu uma mulher a quem desejou. Então, apanhou um machado...
Imbecil! — interrompeu-me Zorba, adivinhando o que eu ia dizer. — cortar logo isso! Que idiota! Isso nunca foi obstáculo!
Como não! — disse eu. — um grande obstáculo, até!
Obstáculo para quê?
Obstáculo à sua entrada no reino dos céus.
Zorba me olhou de lado, com um ar brincalhão.
Mas, que tolice — disse ele, — isso é justamente a chave do paraíso!
Ergueu a cabeça e olhou-me com atenção, querendo adivinhar minhas ideias sobre vida futura, reino dos céus, mulheres e padres.
Mas pareceu não ter podido adivinhar muito, pois balançou com circunspecção sua grande cabeça grisalha.
Os aleijados não entram no paraíso! — disse ele, e se calou.
Fui deitar-me em minha cabina e peguei um livro: Buda governava ainda meus pensamentos. Li o Diálogo de Buda e o Pastor, que nos últimos tempos me enchia de paz e segurança.
O Pastor — Minha refeição está pronta, minhas ovelhas cuidadas. À porta de minha cabana está passando o ferrolho, e meu fogo está aceso. E tu, céu, podes chover quando quiseres!
Buda — não preciso mais nem de comida nem de leite. Os ventos são meu teto, meu fogo se apagou. E tu céu, podes chover quando quiseres!
O Pastor — tenho bois, tenho vacas, tenho os pastos de meu pai, e um touro para cobrir minhas vacas. Eu tu, céu, podes chover quanto quiseres!
Buda — não tenho bois nem vacas. Não tenho pastos. Não tenho nada. Não tenho medo de nada. E tu, céu, podes chover quanto quiseres!
O Pastor — tenho uma pastora dócil e fiel. Há alguns anos ela é minha mulher, e sinto-me feliz em brincar com ela à noite. E tu, céu, podes chover quando quiseres.
Buda — tenho uma alma dócil e livre. Há alguns anos eu a exercito e ensino-lhe a brincar comigo. E tu, céu, podes chover quando quiseres.
Essas duas vozes falavam ainda quando veio o sono. O vento se tinha levantado de novo, e as ondas quebravam sobre a escotilha de vidro grosso. Eu vagava como fumaça entre a vigília e o sono. Uma violenta tempestade caiu, os prados escureceram, os bois, as vacas e o touro foram tragados. O vento arrancou o telhado da cabana e o fogo apagou-se. A mulher deu um grito e caiu morta na lama. E o pastor começou a lamentar-se; ele gritava, eu não entendia o que dizia, mas ele gritava; e eu mergulhava cada vez mais no sono, deslizando como um peixe no mar.
Quando acordei, ao nascer do dia, a grande ilha senhorial estendia-se à nossa direita, altiva e selvagem. As montanhas, de uma rosa pálida, sorriam por trás da bruma sob um sol de outono. Em torno de nós o mar, de um azul brilhante, se agitava ainda inquieto.
Zorba, enrolado num coberto marrom, olhava para Creta insaciavelmente. Seu olhar vagava da montanha para a planície, depois costeava a praia, explorando-a como se todas essas terras e mares lhe fossem familiares, e como se lhe fosse agradável acariciá-los de novo em pensamento.
Aproximei-me dele e toquei seu ombro:
Positivamente, não é esta a primeira vez que você vem a Creta, Zorba! — disse-lhe. — você olha para ela como se fosse uma velha amiga.
Zorba bocejou como quem se aborrece. Senti que ele não estava disposto a iniciar uma conversa.
Sorri.
Não quer conversa, Zorba?
Não é que não queira, patrão — disse ele. — mas me custa...
Custa? Por quê?
Não respondeu logo. De novo passeou seu olhar lentamente pelas praias. Ele havia dormido no tombadilho, e seus cabelos grisalhos e crespos estavam úmidos de orvalho. Todas as rugas profundas de suas faces, as do queixo e do pescoço, estavam iluminadas até o fundo pelo sol que se erguia.
Enfim, os grossos lábios pendentes como os de um bode se mexeram.
De manhã demoro a abrir boca. Custa-me muito, desculpe.
Ele se calou e, de novo, fixou seus pequenos olhos redondos sobre Creta.
O sino soou, chamando para o café. Rostos amassados, de um amarelo esverdeado, começaram a surgir das cabinas. Mulheres de coques desfeitos se arrastavam, titubeantes, de mesa em mesa.
Cheiravam a vômito e água-de-colônia, e tinham o olhar vago, aterrorizado e imbecil.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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