segunda-feira, 15 de março de 2021

De como era a fazenda

 


Era assim: o que quiser que tenha, tinha. Tinha arrebol? Tinha. Rouxinol? Tinha. Luar do sertão, palmeira imperial, girassol, tinha. Também tinha temporal, barranco, às vezes lamaçal, o diabo. Depois bananeira, até cachoeira, mutuca, boto, urubu, horizonte, pedra, pau, trigo, joio, cactus, raios, estrela cadente, incandescências. Enfim.
Bois, vacas, bezerros andavam misturados (cerca não tinha) pelos alqueires. Ao todo éramos doze mil cabeças, ou cento e vinte, ou doze milhões, não sei, éramos muitas cabeças mas ninguém sabia o resultado do último censo. Um touro vivia copulando à vista de todos, ao ar livre. Algumas leis havia sim. Não podia apontar estrela, por exemplo, que dava verruga na ponta do dedo. Se brincasse de vesgo, batia uma brisa e ficava vesgo para sempre. Nem podia olhar mulher nua que nascia terçol. Mas essas leis não eram muito temidas e andava cheio de gente estrábica com terçol e verruga. As estações não se entendiam e a primavera jamais floriu. O mato crescia irregular, aqui aos tufos, lá nenhum. Lá um bezerrote mal podia nascer que já se-lhe coagulava de moscas o umbigo. Então o rebanho partia, unguento no umbigo, procurando a água mais próxima a muitas léguas. Marcha arrastada e áspera, marcada a chocalho e queixada, marcha de rachar casco nos cascalhos. Só chegavam no verão, que também chamam inverno porque chove muito. Daí o açude transbordava, carregando todo mundo de volta para casa ou para o outro lado. No inverno seguinte, ou verão, a gente reconstruía a vida, aqueles tufos. Bois, vacas, um touro copulando e a nova cria, que desta vez tudo correria bem melhor. Solstício, equinócio, estiagem e toca a boiada a caminho das águas logo ali longe.
Nesse vaivém sem chapéu, o sol alterava o roteiro de muitas vidas. Gente ficava pela estrada, outros se perdiam. Como raros andavam ferrados com seus sobrenomes, ninguém mais sabia quem era de quem. Fazia sucesso a canção:

Ninguém é de ninguém
Na vida tudo passa
Ninguém é de ninguém
Até quem nos abraça

Nego aproveitava o embalo para roubar mulher de nego. Era uma alegria. Uma irresponsabilidade. E como não dava jeito de descornar toda a manada, saía briga com chifrada e muita sangueira. Saía muita briga porque cada cabeça queria pensar duma maneira diferente e assim não é possível. Para um único assunto havia cento e vinte, doze mil, um milhão e duzentos palpites, não poderia mesmo nunca dar certo.
Mas como ia dizendo, naquela transumância se desfaziam famílias e se constituíam outras. Se inventavam famílias como os bezerros Abá e Aurora que se apresentaram numa enxurrada dessas. E com prazer se deixaram arrebatar pela corrente, romperam comportas, dançaram o beguine, trocaram begônias e foram pousar na pradaria onde se amaram sem pensar. Ao rebento chamaram Boaventura, sem pensar tanto nas agruras da terra. Quando no seco, cantavam pastorelas. Dançavam barcarolas nos aluviões. E todo ano novo o colonião verdinho dava um otimismo de fazer mais filho: Cáspite, Deodora, Eldorado e abecedário em frente, se possível até o zênite das incelências. Nas entressafras, porém, Abá e Aurora lastimavam-se um bocado. Junto ruminavam coisas como justiça, abundância, mundo melhor, um mundo fundado no nada feito, mundo às avessas do já mal feito, feitio de mundo que ninguém viu, essas sandices que a gente só imagina quando não tem que furar poço e cavucar atrás de raiz, toca boiada.
Pastorelas e barcarolas à parte, é inútil fazer romance do que acontecia na fazenda. Não há poesia com carrapatos. Sarna, piolhos, gusanos, piroplasmosis e toda espécie de parasitas. O diabo é que aquela variedade de bactérias, teoricamente mortais, habitava o organismo das reses em harmônica simbiose. Não sei. Sei que no crucial do matadouro a bezerrada berrava tanto, esperneava tanto, que daí se deduz que aquela vida, tudo somado, era uma vida boa.
Podia ser boa e bonita. Mas dava prejuízo. E tem mais: a indisciplina reinava, imperava o mal. Campeavam as libertinagens. Elogiava-se a loucura. As hierarquias eram revertidas, a higiene, o recato. Um quadro nada modelar. Portanto já era tempo de impor a ordem à comunidade vacum.

Chico Buarque de Holanda, in Fazenda Modelo

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