Uma das minhas cenas favoritas de
qualquer filme em qualquer época é a do final de Crepúsculo dos
deuses (Sunset Blvd., 1950), de Billy Wilder. Completamente
ensandecida, a outrora grande estrela Norma Desmond (Gloria Swanson,
magnífica), banida das telas pela idade (“uma velha de cinquenta
anos!”, ruge, a certo momento, o seu protegido/explorador/vítima,
Joe Gillis/William Holden) desce lentamente a escadaria de sua
mansão. É um truque para fazê-la entregar-se pacificamente à
polícia. A casa está repleta de policiais, repórteres e equipes
dos “jornais da tela”, os “telejornais” do momento. Num gesto
de compaixão, Max, o chofer que um dia foi diretor (Eric Von
Stroheim), convence Norma de que ela está num set de filmagem, em
plena produção do roteiro que ela vem tentando produzir ao longo de
todo o filme, mais uma versão do drama de Salomé e João Batista.
Todas aquelas luzes! Todas aquelas câmeras! Toda aquela gente! Que
maravilha! Emocionada, Norma pede para fazer um discurso. Diz que
está feliz em voltar a um set, e que jamais abandonará seus fãs.
E, acima de tudo, conclui que, para ela, não existe mais nada,
“apenas as luzes, as câmeras e todas aquelas pessoas maravilhosas
na escuridão”.
E, dirigindo-se a nós e à lente da
câmera, desaparece num dos mais geniais fade-outs do cinema.
Susan Sontag, que teorizou sobre quase
tudo, diz que a experiência essencial de ir ao cinema é o desejo de
“ser sequestrado pelo filme, ser possuído pela presença física
da imagem”. É uma boa analogia, e definitivamente parte do charme
centenário da arte. No entanto, não creio que seja apenas isso; sou
mais partidária das visões de Jean Cocteau, Luiz Buñuel e David
Lynch: o cinema é a arte mais próxima do sonho acordado. Estamos no
escuro, mas de olhos bem abertos. Se o filme for realmente bom, se
ele for tudo o que uma película pode ser, conversará conosco,
exigindo de nosso cérebro, alma, espírito, corpo astral ou seja lá
o que se quiser chamar a contrapartida de preencher as lacunas,
absorver o que é apenas intuído, mas não é visto por completo,
associar som e imagem, e, dentro dessa última, cor, textura, ritmo e
luminosidade.
É um sonho, mas proposto por outra
pessoa: cabe a nós torná-lo nosso sonho. Ou não.
A isso eu chamo ver, e não assistir.
Passar do estágio de plateia passiva — a que se deixa sequestrar
pelo filme — para o de plateia ativa — que colabora com os
realizadores acrescentando ao filme sua percepção, memórias e
emoções de espectador. Deixando-se levar por algumas ideias,
recusando outras. Compreendendo, o tempo todo, por que está vendo o
que está vendo (e não outra coisa), nesta ordem (e não em outra) e
com estes sons (e não outros, ou nenhum).
Quando conseguimos isso, a experiência
de ir ao cinema se transforma. O filme se abre para nós. Passamos a
compreender intenções e planos de quem nos propõe o sonho do dia,
e a ter os apetrechos para aceitá-los ou não. O filme se torna,
como deve ser, uma conversa. De preferência, uma conversa
inteligente.
Uma plateia desperta, sonhando
conscientemente. É uma plateia interessante: curiosa — e perigosa.
É mais difícil subestimá-la, ofender sua inteligência. Torna-se
absolutamente essencial para os realizadores cumprir sua parte do
trato: honrar o investimento inestimável de dinheiro (e o aumento do
preço do ingresso garante que esse investimento seja cada vez mais
substancial) e, sobretudo, o tempo que cada pessoa na plateia
disponibiliza quando opta por ver um filme. O que estou dando em
troca das duas preciosas horas de vida e atenção absoluta que essa
pessoa escolheu dedicar à minha visão? Algo inteligente ou tosco?
Fascinante ou repulsivo? Estimulante ou emburrecedor? Importante
apenas para o meu umbigo ou capaz de tocar outras vidas?
Se cada realizador imaginar que ali, no
escuro da sala, cada uma daquelas pessoas maravilhosas está alerta,
sabendo o que está vendo e por que está vendo, essas perguntas
deixam de ser retóricas e passam a integrar um verdadeiro contrato
entre produtor e consumidor de arte e entretenimento. Um contrato
que, num cenário ideal, nos elevará, dos dois lados da luz da tela.
Ana Maria Bahiana, in Como ver um filme
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