terça-feira, 23 de março de 2021

Com paixão e desmedo

Ao amar, desvendei a serventia do corpo para além de guardar a alma imortal. Até então, o corpo só me servia para carregar no estômago o tomate. Favorecia-me, vez por outra, ao nadar no córrego e desfrutar a maciez das águas, ao pedalar a bicicleta do padre, ao correr nos campos e vencer o mais longe. No amor, meu corpo delatou a presença da alma, que veio morar na superfície de minha pele.

Eu avistei o vigário — representante de Deus na cidade — cruzando de bicicleta a ponte do rio. Como o mundo, não sabia de onde ele vinha nem se viajava para o céu. O vento soprava sua batina negra, e um anjo de fumaça escura parecia voar com ele. O padre puxou a batina até a altura dos joelhos, que ele sempre dobrava em orações, diante do altar. Decepcionei-me ao observar sua calça de brim bege. O santo homem era também um homem. Quis ter uma bicicleta para me buscar muito depois de mim.

A mão do amor roçava meu corpo — mansa como a melancolia — afrouxando-me inteiro. Eu me entregava, sem reservas, com paixão e desmedo. Sumir dentro de meu amor, perder-me em sua respiração, encarnar-me em sua carne, ser o sonho de meu amor, era tudo o que mais pensava. Nem minha mãe, bem longe de mim, adivinharia meu paradeiro. Meu amor me acrescentava mais pecados, mas o padre, no segredo das confissões, perdoava-me.

Menino miúdo, menor que a vida, debilitado pelo amor, eu repetia que a dor do parto é também de quem nasce. Doía. Doía na pele inteira, e profundamente. Minha toda fragilidade, suportava toneladas de desassossegos. Impossível deitar-me em meu próprio colo e acalentar-me. Não suportaria o peso de minha carga.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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