Vivia Bentinho dando dias de serviço na
engenhoca de rapadura do capitão Custódio. Trabalhava na arrumação
das caixas, com mais dois sertanejos de Vila Bela, dois caboclos
calados e tristes que bateram ali sozinhos, sem família, atrás de
ocupação. Moravam numa dependência da casa do capitão.
Chamavam-se Terto e Germano e pouco contavam de suas vidas. Apenas se
referiam a Vila Bela e à seca que havia arrasado seu povo. Terto, o
mais moço, se acamaradou logo com Bentinho, enquanto Germano
permanecia distante, mudo e de cara trancada na arrumação das
rapaduras, nas caixas de palha. E foi assim que Bentinho veio a saber
da história de Terto. Germano fora à venda comprar mantimento e
Terto se abriu com o companheiro. Eram irmãos e moravam na Fazenda
Serrinha do capitão Zé do Monte, ali na Serra dos Ciganos. Viviam
com o pai, agricultor, nascido dos índios da Serra Talhada. Uma vez,
passou pelo sítio onde ele morava o capitão Aparício Vieira. O
velho recebeu os homens conforme as suas posses. Deu-lhes coalhada e
tratou-os como se trata uma visita de cerimônia. Pois bem, não
demorou muito e bateu por lá a força do tenente Lopes, homem também
natural de Vila Bela: “Pegaram o velho meu pai e foram com ele ao
cipó de boi. Amarraram ele na prensa da casa de farinha e foi um dar
de cortar coração. Eu e Germano já estávamos no meio dos praças.
Germano ainda quis se fazer na faca e levou uma coronhada de rifle
que pegou, lá nele, bem no pé do ouvido. As minhas irmãs deram
para chorar e eu vi o desgraçado dum praça apalpando uma delas como
se fosse galinha. Pulei pra cima do cabra e nem sei contar o que
aconteceu. Veja esta marca de talho, aqui na testa. Fizeram o diabo
nas moças bem na nossa cara. Levaram o velho para Vila Bela,
estragaram as moças minhas irmãs e foram dando no velho até na
cadeia. Deixaram a gente naquela miséria. Só sei que dois dias
depois bateu na nossa casa a notícia: o velho tinha morrido. O
capitão Zé do Monte chamou Germano e pediu a casa. Não queria
saber de coiteiro nas suas terras. A minha mãe mudou-se com as
meninas ofendidas para uma propriedade que uma irmã dela tinha, para
as bandas de Triunfo. Germano não podia olhar para as meninas. E me
disse mesmo uma vez que, pelo gosto dele, matava as duas. Moça
desonrada assim não valia a pena viver. E nunca mais eu vi Germano
arreganhar os dentes para sorrir. É aquela cara de pau, de manhã à
noite. Ele me diz todo o dia que só descansa quando cair no grupo de
Aparício Vieira. Mas como eu não quero saber de cangaço, ele vive
fugindo do mundo. Viemos para este esquisito e aqui estamos neste
cocuruto de serra. A raiva de Germano está roendo a alma dele. Nunca
mais soubemos nem de mãe nem das meninas. Germano como que tem nojo
da nossa gente.”
Ouviu Bentinho as histórias do Caboclo e
lembrou-se muito bem do que sofrera sua gente no Araticum. O tenente
Maurício reduzira o seu povo àquela mesma desgraça. Graças a Deus
que não tivera irmãs para sofrimento maior.
Agora, porém, não podia compreender
aquela mágoa constante de sua mãe, aquele sofrer de todos os
instantes, em relação a Aparício. Para ela, o filho mais velho
seria um castigo imposto, uma dor que ela sofria sabendo que nunca
mais pararia de doer. Para Bentinho a mãe Josefina estava em erro.
Pela sua vontade ele nunca deveria ter saído do Açu. Muito quisera
sua mãe que ele se separasse duma vez para sempre de sua gente. Fora
dado, na grande seca, ao padre Amâncio, e na companhia do padrinho
subira de condição. É. A sua mãe não estaria certa nem aquela
mortandade dos romeiros pudera mudar a sua opinião. A velha não
rezava mais. Tinha secado o seu coração, e padecia no seu silêncio,
como uma pedra, num canto, indiferente ao sol, à chuva, à lua. Não
tinha vontade de voltar para casa. Lá, naquele retiro, o mundo
minguava de tamanho. Sinhá Josefina cuidava muito bem da casa. E
pelo dia, de enxada na mão, curvada sobre a terra, cuidava da horta,
dos seus coentros, das suas malvas, dos seus bredos. Dava-lhe a
bênção e quando falava com ele era num falar de instante. Já não
era mais aquele comunicar de coração a coração. Há meses que
moravam ali, e dia a dia sinhá Josefina secava. O corpo fino, a boca
murcha, o olhar vago sem a energia do antigo olhar da mãe do
Araticum. A vida para ela comprimia-se cada vez mais. Numa tarde de
domingo, apareceu para uma visita o capitão Custódio. Amarrou o seu
cavalo no juazeiro e foi logo entrando na conversa que o tinha
trazido até ali:
— Senhora dona Josefina, trago um
recado do vosso filho, do capitão Aparício Vieira. Chegou-me este
recado pela boca do tangerino Moreno. Mandou dizer o capitão que
fosse ficando a senhora por aqui mesmo e que o vosso filho Domício
tinha sofrido um ferimento de bala, na perna, mas que com a graça de
Deus estava quase são. O fato é que o grupo de Aparício entrou num
fogo pesado com a tropa da Paraíba. Ele estava acoitado numa fazenda
de um tal Crisanto Pereira, quando se viu cercado. O fogo durou para
mais de duas horas, Aparício estava com vinte cabras e, se não
fosse a munição que tinha recebido há oito dias atrás de uns
amigos do Ceará, estaria liquidado. Mas o vosso filho, senhora dona
Josefina, tem mesmo a proteção de Deus. Os soldados do tenente
Oliveira não puderam atravessar o cercado de pedra do curral do
velho Crisanto Pereira: foi quando o vosso filho Domício, com mais
dois cabras, saltaram para o meio dos soldados, fizeram fogo, quase
que na cara dos cabras. Aí, Aparício aproveitou e deu uma descarga
e rompeu o cerco, caindo na caatinga. Perdeu dois homens, e o vosso
filho Domício recebeu, lá nele, um tiro na perna esquerda. Mas com
tamanha sorte que foi ferimento leve. Me disse o Moreno que a força
teve mais de cinco mortos para enterrar em Princesa. O velho Crisanto
está preso na capital, mas já tem advogado. É homem de Marcolino,
de Princesa. Com pouco mais está na rua.
A velha procurou inteirar-se de mais
detalhes sobre Domício, porém o que o capitão Custódio sabia já
lhe havia confessado. E passou a falar do coronel Cazuza Leutério. O
filho agora era deputado. A filha se casara com um engenheiro da
estrada de ferro de Paulo Afonso. Agora mandava também nos trens.
Cada vez mais poderoso, mais dono de tudo.
— Eu sei, senhora dona Josefina, que a
senhora não está querendo saber de minhas queixas. É que tenho um
filho assassinado, senhora dona, sou um pai desonrado.
A voz do capitão apertou-se na garganta.
E sinhá Josefina pôde falar com mais franqueza diante daquela
confissão de homem fraco:
— É verdade, capitão, eu não sei o
que é um filho assassinado. Deus, porém, me reservou outras dores,
sofrimento que só uma mãe sabe o quanto custa sofrer.
Bentinho, temendo que a mãe se
adiantasse nas suas referências a Aparício, entrou na conversa:
— Capitão, podia o senhor me dizer se
o ferimento de Domício deu para quebrar-lhe a perna?
— Menino, não lhe posso dizer nada. O
tangerino Moreno me falou somente do ferimento, e não me adiantou
nada sobre o estado do rapaz. Acredito que teu irmão já deve estar
outra vez no serviço. Cazuza Leutério está imaginando que há de
mandar a vida inteira neste sertão. Outro dia me vieram falar de
política. Foi o promotor de Alagoas de Baixo, rapaz filho dos
Wanderley de Triunfo. Eu disse a ele: “Senhor doutor, aqui quem
manda é Cazuza Leutério, manda mais do que o governo. Jatobá e
Paracatu é o mesmo que fazenda dele. E está tudo acabado. Foi assim
na Monarquia e assim entrou pela República. Haja rei, haja
presidente, manda Cazuza e está acabado.” Bem, eu quis cortar a
conversa. “Nada quero de política, senhor doutor. Fui liberal nos
tempos antigos e os liberais nunca puderam aqui com o povo do pai de
Cazuza Leutério. Eu sei é que, hoje em dia, de nada vale o direito
do voto. Manda Cazuza Leutério nas eleições e no júri. O resto é
conversa.” O meu filho está ali, enterrado com a mãe, e eu estou
aqui, de cara calçada. Menino, só o teu irmão Aparício Vieira é
que é homem neste sertão. Ele sabe que justiça de verdade só
mesmo na boca do rifle. Tive vontade de dizer ainda mais ao doutor:
“Este velho que está ali, naquele cocuruto de serra, só sai de
casa para votar no nome do capitão Aparício Vieira.” Fechei,
porém, a minha boca e dei o calado como resposta. Os Wanderley de
Triunfo estão pensando que podem com o Cazuza Leutério. O meu filho
está ali, debaixo da terra, e eu estou aqui contando histórias.
Depois do café, o capitão Custódio
despediu-se. Bentinho foi com ele até o juazeiro. E aí o velho,
quase ao seu ouvido, foi-lhe dizendo:
— Menino, o teu mano Domício está
muito ferido. Nada quis dizer a tua mãe para não aperrear a
coitada. Ferimento, lá nele, no vão direito. Tá lá em casa, e vem
para aqui, na outra semana. O homem está muito doente, tenho, porém,
para mim que vai arribando.
Bentinho voltou para a mãe que logo
procurou saber o que lhe havia contado o capitão Custódio:
— Olha, Bentinho, o capitão me
escondeu a verdade. Uma coisa me diz que Domício não está bom.
Coitado. Solto aí por estas caatingas como um bicho.
E baixou a cabeça e lágrimas lhe vieram
aos olhos.
— Eu não tenho coragem de nada pedir a
Deus. Ele lá, no alto, sabe que a minha gente merece tudo isto que
está padecendo.
Bentinho fez força para não lhe contar
o que sabia.
— Nada, mãe, a senhora está em erro.
Deus não vai castigar os inocentes. Que mal pode ter feito a senhora
neste mundo?
Ela não lhe deu resposta, mas fixou os
olhos molhados sobre ele e os seus olhos baços e tristes falaram
mais que a sua boca.
Naquela noite Bentinho não pregou olhos,
não encontrou jeito de ficar na rede, quis abrir as portas e sair,
andar, desabafar os pensamentos que ficavam em sua cabeça. Domício,
o irmão Domício, doente, varado de bala, amarelo, sem uma gota de
sangue, esperava por ele. Bem que podia ter seguido o capitão e
chegar na casa-grande e abraçar o irmão querido. Ele não devia ter
feito isso. Todo o cuidado era pouco. O rastro de um cangaceiro era
seguido pelas terras do sertão, como de caça acossada pelos
cachorros. Tropas de quatro estados corriam atrás de Aparício,
varavam as caatingas, matando e espancando. Só mesmo Aparício tinha
cabeça e pulso para aguentar aquele repuxo. Estava certo que a sua
mãe naquele momento não pregaria olhos. Domício estaria na sua
mente. Sabia que a mãe tinha o seu fraco pelo filho Domício. O
filho triste sabia cantar tirando da viola mágoas do coração.
E de repente criara têmpera de
cangaceiro. Sabia que Domício estava metido com o grupo de Aparício
e era agora homem de ação de macho, pronto para enfrentar uma
tropa, com aquela disposição de que lhe falou o capitão Custódio.
Lembrou-se de Domício, fraco como uma moça de alma partida, com
medo do canto da mulher nua da furna das caboclas. Viu assim chegar a
madrugada pela telha-vã. Quando abriu a porta da frente todo o céu
parecia banhado de sangue. O sertão inteiro cantava pelos seus
pássaros, e até as cigarras, que tinham se sumido, voltavam
assanhadas com o calor de dezembro. Bentinho sentou-se no batente do
copiá. Soprava a doce brisa da madrugada que se arrebentava nas
barras cor de zarcão. Quis deixar a mãe e correr para Domício. Lá
de dentro, porém, ouviu o chamado pelo seu nome. Sinhá Josefina, de
pé, também saíra do quarto para fugir dos seus pensamentos:
— Bentinho, não preguei olhos a noite
toda. Estou certa de que Domício está muito ferido. Aquela conversa
do capitão não me deu fé no que ele dizia. Se Deus me desse força
eu ia correndo para junto de meu filho. Eu sei que Domício não tem
aquela ira de Aparício, aquela doença comendo a alma dele. Coitado,
sozinho por estas caatingas. Aparício só sossegou quando carregou
com ele o meu filho. O sangue do povo do teu pai não corre nas veias
daquele menino.
Tomaram café em silêncio. Bentinho com
uma vontade louca de sair de casa e correr até a Roqueira, e sinhá
Josefina sombria, de olhar vago. Nisto ouviram passadas de cavalo na
porta de casa. Bentinho levantou-se às pressas. A velha não se
mexeu do lugar, sentada no tamborete de costas para a porta de
frente. Ouviu-se o grito de Bentinho correndo para um homem que havia
parado por debaixo do juazeiro. A velha levantou-se rápida e como se
estivesse vendo uma miragem enxergou o seu filho Domício, amparado
nos braços de Bentinho. Passou a mão nos olhos para verificar se
não era mentira. Então, como se tivesse recobrado toda a agilidade
da mocidade, correu para o viajante e abraçou-se com ele aos
soluços:
— Foi Deus quem te mandou, meu filho.
Foi Deus.
Domício veio se arrastando até o copiá,
sem forças, ofegante. Tinha a palidez de uma mulher parida. Os
cabelos quase que nos ombros. A imagem perfeita de um romeiro, às
portas da morte. Não pôde falar. Somente apontou para o peito,
enquanto a mãe e o irmão o conduziam para a rede do quarto:
— Mãe — foi dizendo, de língua
empastada —, estou nas últimas.
Os olhos amarelos se fixaram na velha,
que se transformou por completo.
— Qual, meu filho, aqui está a tua mãe
para te curar as feridas. Ainda tenho vida para te dar. Bentinho,
traz café para Domício.
José Lins do Rego, in Cangaceiros
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