sábado, 13 de março de 2021

A mãe dos cangaceiros / 5

          Vivia Bentinho dando dias de serviço na engenhoca de rapadura do capitão Custódio. Trabalhava na arrumação das caixas, com mais dois sertanejos de Vila Bela, dois caboclos calados e tristes que bateram ali sozinhos, sem família, atrás de ocupação. Moravam numa dependência da casa do capitão. Chamavam-se Terto e Germano e pouco contavam de suas vidas. Apenas se referiam a Vila Bela e à seca que havia arrasado seu povo. Terto, o mais moço, se acamaradou logo com Bentinho, enquanto Germano permanecia distante, mudo e de cara trancada na arrumação das rapaduras, nas caixas de palha. E foi assim que Bentinho veio a saber da história de Terto. Germano fora à venda comprar mantimento e Terto se abriu com o companheiro. Eram irmãos e moravam na Fazenda Serrinha do capitão Zé do Monte, ali na Serra dos Ciganos. Viviam com o pai, agricultor, nascido dos índios da Serra Talhada. Uma vez, passou pelo sítio onde ele morava o capitão Aparício Vieira. O velho recebeu os homens conforme as suas posses. Deu-lhes coalhada e tratou-os como se trata uma visita de cerimônia. Pois bem, não demorou muito e bateu por lá a força do tenente Lopes, homem também natural de Vila Bela: “Pegaram o velho meu pai e foram com ele ao cipó de boi. Amarraram ele na prensa da casa de farinha e foi um dar de cortar coração. Eu e Germano já estávamos no meio dos praças. Germano ainda quis se fazer na faca e levou uma coronhada de rifle que pegou, lá nele, bem no pé do ouvido. As minhas irmãs deram para chorar e eu vi o desgraçado dum praça apalpando uma delas como se fosse galinha. Pulei pra cima do cabra e nem sei contar o que aconteceu. Veja esta marca de talho, aqui na testa. Fizeram o diabo nas moças bem na nossa cara. Levaram o velho para Vila Bela, estragaram as moças minhas irmãs e foram dando no velho até na cadeia. Deixaram a gente naquela miséria. Só sei que dois dias depois bateu na nossa casa a notícia: o velho tinha morrido. O capitão Zé do Monte chamou Germano e pediu a casa. Não queria saber de coiteiro nas suas terras. A minha mãe mudou-se com as meninas ofendidas para uma propriedade que uma irmã dela tinha, para as bandas de Triunfo. Germano não podia olhar para as meninas. E me disse mesmo uma vez que, pelo gosto dele, matava as duas. Moça desonrada assim não valia a pena viver. E nunca mais eu vi Germano arreganhar os dentes para sorrir. É aquela cara de pau, de manhã à noite. Ele me diz todo o dia que só descansa quando cair no grupo de Aparício Vieira. Mas como eu não quero saber de cangaço, ele vive fugindo do mundo. Viemos para este esquisito e aqui estamos neste cocuruto de serra. A raiva de Germano está roendo a alma dele. Nunca mais soubemos nem de mãe nem das meninas. Germano como que tem nojo da nossa gente.”
Ouviu Bentinho as histórias do Caboclo e lembrou-se muito bem do que sofrera sua gente no Araticum. O tenente Maurício reduzira o seu povo àquela mesma desgraça. Graças a Deus que não tivera irmãs para sofrimento maior.
Agora, porém, não podia compreender aquela mágoa constante de sua mãe, aquele sofrer de todos os instantes, em relação a Aparício. Para ela, o filho mais velho seria um castigo imposto, uma dor que ela sofria sabendo que nunca mais pararia de doer. Para Bentinho a mãe Josefina estava em erro. Pela sua vontade ele nunca deveria ter saído do Açu. Muito quisera sua mãe que ele se separasse duma vez para sempre de sua gente. Fora dado, na grande seca, ao padre Amâncio, e na companhia do padrinho subira de condição. É. A sua mãe não estaria certa nem aquela mortandade dos romeiros pudera mudar a sua opinião. A velha não rezava mais. Tinha secado o seu coração, e padecia no seu silêncio, como uma pedra, num canto, indiferente ao sol, à chuva, à lua. Não tinha vontade de voltar para casa. Lá, naquele retiro, o mundo minguava de tamanho. Sinhá Josefina cuidava muito bem da casa. E pelo dia, de enxada na mão, curvada sobre a terra, cuidava da horta, dos seus coentros, das suas malvas, dos seus bredos. Dava-lhe a bênção e quando falava com ele era num falar de instante. Já não era mais aquele comunicar de coração a coração. Há meses que moravam ali, e dia a dia sinhá Josefina secava. O corpo fino, a boca murcha, o olhar vago sem a energia do antigo olhar da mãe do Araticum. A vida para ela comprimia-se cada vez mais. Numa tarde de domingo, apareceu para uma visita o capitão Custódio. Amarrou o seu cavalo no juazeiro e foi logo entrando na conversa que o tinha trazido até ali:
Senhora dona Josefina, trago um recado do vosso filho, do capitão Aparício Vieira. Chegou-me este recado pela boca do tangerino Moreno. Mandou dizer o capitão que fosse ficando a senhora por aqui mesmo e que o vosso filho Domício tinha sofrido um ferimento de bala, na perna, mas que com a graça de Deus estava quase são. O fato é que o grupo de Aparício entrou num fogo pesado com a tropa da Paraíba. Ele estava acoitado numa fazenda de um tal Crisanto Pereira, quando se viu cercado. O fogo durou para mais de duas horas, Aparício estava com vinte cabras e, se não fosse a munição que tinha recebido há oito dias atrás de uns amigos do Ceará, estaria liquidado. Mas o vosso filho, senhora dona Josefina, tem mesmo a proteção de Deus. Os soldados do tenente Oliveira não puderam atravessar o cercado de pedra do curral do velho Crisanto Pereira: foi quando o vosso filho Domício, com mais dois cabras, saltaram para o meio dos soldados, fizeram fogo, quase que na cara dos cabras. Aí, Aparício aproveitou e deu uma descarga e rompeu o cerco, caindo na caatinga. Perdeu dois homens, e o vosso filho Domício recebeu, lá nele, um tiro na perna esquerda. Mas com tamanha sorte que foi ferimento leve. Me disse o Moreno que a força teve mais de cinco mortos para enterrar em Princesa. O velho Crisanto está preso na capital, mas já tem advogado. É homem de Marcolino, de Princesa. Com pouco mais está na rua.
A velha procurou inteirar-se de mais detalhes sobre Domício, porém o que o capitão Custódio sabia já lhe havia confessado. E passou a falar do coronel Cazuza Leutério. O filho agora era deputado. A filha se casara com um engenheiro da estrada de ferro de Paulo Afonso. Agora mandava também nos trens. Cada vez mais poderoso, mais dono de tudo.
Eu sei, senhora dona Josefina, que a senhora não está querendo saber de minhas queixas. É que tenho um filho assassinado, senhora dona, sou um pai desonrado.
A voz do capitão apertou-se na garganta. E sinhá Josefina pôde falar com mais franqueza diante daquela confissão de homem fraco:
É verdade, capitão, eu não sei o que é um filho assassinado. Deus, porém, me reservou outras dores, sofrimento que só uma mãe sabe o quanto custa sofrer.
Bentinho, temendo que a mãe se adiantasse nas suas referências a Aparício, entrou na conversa:
Capitão, podia o senhor me dizer se o ferimento de Domício deu para quebrar-lhe a perna?
Menino, não lhe posso dizer nada. O tangerino Moreno me falou somente do ferimento, e não me adiantou nada sobre o estado do rapaz. Acredito que teu irmão já deve estar outra vez no serviço. Cazuza Leutério está imaginando que há de mandar a vida inteira neste sertão. Outro dia me vieram falar de política. Foi o promotor de Alagoas de Baixo, rapaz filho dos Wanderley de Triunfo. Eu disse a ele: “Senhor doutor, aqui quem manda é Cazuza Leutério, manda mais do que o governo. Jatobá e Paracatu é o mesmo que fazenda dele. E está tudo acabado. Foi assim na Monarquia e assim entrou pela República. Haja rei, haja presidente, manda Cazuza e está acabado.” Bem, eu quis cortar a conversa. “Nada quero de política, senhor doutor. Fui liberal nos tempos antigos e os liberais nunca puderam aqui com o povo do pai de Cazuza Leutério. Eu sei é que, hoje em dia, de nada vale o direito do voto. Manda Cazuza Leutério nas eleições e no júri. O resto é conversa.” O meu filho está ali, enterrado com a mãe, e eu estou aqui, de cara calçada. Menino, só o teu irmão Aparício Vieira é que é homem neste sertão. Ele sabe que justiça de verdade só mesmo na boca do rifle. Tive vontade de dizer ainda mais ao doutor: “Este velho que está ali, naquele cocuruto de serra, só sai de casa para votar no nome do capitão Aparício Vieira.” Fechei, porém, a minha boca e dei o calado como resposta. Os Wanderley de Triunfo estão pensando que podem com o Cazuza Leutério. O meu filho está ali, debaixo da terra, e eu estou aqui contando histórias.
Depois do café, o capitão Custódio despediu-se. Bentinho foi com ele até o juazeiro. E aí o velho, quase ao seu ouvido, foi-lhe dizendo:
Menino, o teu mano Domício está muito ferido. Nada quis dizer a tua mãe para não aperrear a coitada. Ferimento, lá nele, no vão direito. Tá lá em casa, e vem para aqui, na outra semana. O homem está muito doente, tenho, porém, para mim que vai arribando.
Bentinho voltou para a mãe que logo procurou saber o que lhe havia contado o capitão Custódio:
Olha, Bentinho, o capitão me escondeu a verdade. Uma coisa me diz que Domício não está bom. Coitado. Solto aí por estas caatingas como um bicho.
E baixou a cabeça e lágrimas lhe vieram aos olhos.
Eu não tenho coragem de nada pedir a Deus. Ele lá, no alto, sabe que a minha gente merece tudo isto que está padecendo.
Bentinho fez força para não lhe contar o que sabia.
Nada, mãe, a senhora está em erro. Deus não vai castigar os inocentes. Que mal pode ter feito a senhora neste mundo?
Ela não lhe deu resposta, mas fixou os olhos molhados sobre ele e os seus olhos baços e tristes falaram mais que a sua boca.
Naquela noite Bentinho não pregou olhos, não encontrou jeito de ficar na rede, quis abrir as portas e sair, andar, desabafar os pensamentos que ficavam em sua cabeça. Domício, o irmão Domício, doente, varado de bala, amarelo, sem uma gota de sangue, esperava por ele. Bem que podia ter seguido o capitão e chegar na casa-grande e abraçar o irmão querido. Ele não devia ter feito isso. Todo o cuidado era pouco. O rastro de um cangaceiro era seguido pelas terras do sertão, como de caça acossada pelos cachorros. Tropas de quatro estados corriam atrás de Aparício, varavam as caatingas, matando e espancando. Só mesmo Aparício tinha cabeça e pulso para aguentar aquele repuxo. Estava certo que a sua mãe naquele momento não pregaria olhos. Domício estaria na sua mente. Sabia que a mãe tinha o seu fraco pelo filho Domício. O filho triste sabia cantar tirando da viola mágoas do coração.
E de repente criara têmpera de cangaceiro. Sabia que Domício estava metido com o grupo de Aparício e era agora homem de ação de macho, pronto para enfrentar uma tropa, com aquela disposição de que lhe falou o capitão Custódio. Lembrou-se de Domício, fraco como uma moça de alma partida, com medo do canto da mulher nua da furna das caboclas. Viu assim chegar a madrugada pela telha-vã. Quando abriu a porta da frente todo o céu parecia banhado de sangue. O sertão inteiro cantava pelos seus pássaros, e até as cigarras, que tinham se sumido, voltavam assanhadas com o calor de dezembro. Bentinho sentou-se no batente do copiá. Soprava a doce brisa da madrugada que se arrebentava nas barras cor de zarcão. Quis deixar a mãe e correr para Domício. Lá de dentro, porém, ouviu o chamado pelo seu nome. Sinhá Josefina, de pé, também saíra do quarto para fugir dos seus pensamentos:
Bentinho, não preguei olhos a noite toda. Estou certa de que Domício está muito ferido. Aquela conversa do capitão não me deu fé no que ele dizia. Se Deus me desse força eu ia correndo para junto de meu filho. Eu sei que Domício não tem aquela ira de Aparício, aquela doença comendo a alma dele. Coitado, sozinho por estas caatingas. Aparício só sossegou quando carregou com ele o meu filho. O sangue do povo do teu pai não corre nas veias daquele menino.
Tomaram café em silêncio. Bentinho com uma vontade louca de sair de casa e correr até a Roqueira, e sinhá Josefina sombria, de olhar vago. Nisto ouviram passadas de cavalo na porta de casa. Bentinho levantou-se às pressas. A velha não se mexeu do lugar, sentada no tamborete de costas para a porta de frente. Ouviu-se o grito de Bentinho correndo para um homem que havia parado por debaixo do juazeiro. A velha levantou-se rápida e como se estivesse vendo uma miragem enxergou o seu filho Domício, amparado nos braços de Bentinho. Passou a mão nos olhos para verificar se não era mentira. Então, como se tivesse recobrado toda a agilidade da mocidade, correu para o viajante e abraçou-se com ele aos soluços:
Foi Deus quem te mandou, meu filho. Foi Deus.
Domício veio se arrastando até o copiá, sem forças, ofegante. Tinha a palidez de uma mulher parida. Os cabelos quase que nos ombros. A imagem perfeita de um romeiro, às portas da morte. Não pôde falar. Somente apontou para o peito, enquanto a mãe e o irmão o conduziam para a rede do quarto:
Mãe — foi dizendo, de língua empastada —, estou nas últimas.
Os olhos amarelos se fixaram na velha, que se transformou por completo.
Qual, meu filho, aqui está a tua mãe para te curar as feridas. Ainda tenho vida para te dar. Bentinho, traz café para Domício.

José Lins do Rego, in Cangaceiros

Nenhum comentário:

Postar um comentário