domingo, 14 de fevereiro de 2021

Viadutos

            — Endereço do colega?
Viaduto São Sebastião, pilastra nº 4, lado esquerdo, na Presidente Vargas. Apareça por lá.
Ótimo. Vou aparecer, mas agora não. Estou de mudança.
Se não for indiscrição, pode-se saber para onde?
Não sei ainda. Moro no viaduto de Japeri, aliás muito confortável, mas compreende, né? Um pouco longe. Procuro um na cidade.
Já experimentou Botafogo?
Fui eu que inaugurei. Era uma habitação deliciosa, aliás duas, com vista panorâmica, banho de mar em frente etc. Mas sabe o que aconteceu: estragaram aquilo, botaram jardins, espelhos d’água…
É. Estão sempre atrapalhando.
Espelho d’água, vá lá, serve para a toalete. Mas o jardim…
Jardim não é bom para secar roupa?
Em tese. Mas há sempre um guarda querendo defender as plantas, implicando com os moradores.
Tem razão. Na vida, o essencial é paz.
Também acho. Folgo em saber que estamos de acordo neste ponto fundamental. Mas, sabe? Os viadutos estão difíceis.
É, ouço dizer. Mesmo havendo tantos por aí? — Todos lotados. Dizem que onde cabem três cabe mais um. Eu discordo. Por essa teoria, onde cabem vinte, cinquenta, mil, cabe sempre mais um. E os viadutos tornam-se inabitáveis, ficam iguaizinhos aos edifícios, o que, francamente, caro colega, não é vantagem.
Vejo que o amigo aprecia a solidão.
Solidão a dois, a três, eu aprecio, quando os colegas sabem viver em comunidade. A gente não está nem sozinha nem com a multidão. Equilibrado. Cada um cuida de si, e reina ordem no viaduto. O que eu não suporto é viaduto desorganizado. Sou muito exigente neste particular.
Estou vendo que lá em Japeri o senhor deve ser uma espécie de síndico.
Que síndico? Quem falou em síndico? Nós três nos autogovernamos. Eu, que atendo por Quilo-e-Meio, seu criado (não cheguei a crescer muito, em todo caso não me chamam de Meio-Quilo), o Vai-por-Mim e a Marlene Garbo.
Por que Marlene Garbo? Não é acumulação?
Porque ela tem as pernas da Marlene Dietrich e o jeito da Greta Garbo. A combinação é genial, sabe? Tem vezes que a gente chama ela de Margá. Santa mulher. Já teve os tubos, viajou pelaí, não guardou nem pinta de grã-finagem.
E o Vai-por-Mim?
Não tenho queixa dele. Só que anda com mania de jogar na Bolsa, nosso viaduto está cheio de balancetes, prospectos, gráficos. Tenho medo que ele fique rico, daí a pouco começa a botar banca.
Dê uns conselhos ao Vai-por-Mim.
Dei. Ele sonha em descobrir jazida de tório em Japeri, para fundar o Banco Nacional de Habitação em Viadutos, Pontes e Congêneres. Não deu sorte na Loteca, hoje diz que o plá é investir. Eu preveni a ele: Ficando rico, a primeira coisa que você vai fazer é cobrar aluguel nos viadutos.
Os viadutos são do Estado.
E daí? Até o Estado perceber, ele já dobrou a fortuna. O colega desculpe, mas isso é safanagem.
Diga ao Vai-por-Mim que apareça aqui no São Sebastião, para batermos um papo.
Vai tirar essas minhocas da cabeça dele?
Não sei… A ideia me parece aproveitável. A socialização dos viadutos, uma cadeia nacional de Hilton dos homens e mulheres independentes… viadutos bem funcionais, o abrigo ao alcance de todos… Um problema social que se resolve…
Sem essa! Eu a querer salvar o Vai-por-Mim, e o colega pensando em tirar partido da loucura dele! Acabando com a paz, a relativa paz que ainda se goza nos viadutos! Não conte comigo e passe muito mal, traidor!

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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