—
Endereço
do colega?
—
Viaduto
São Sebastião, pilastra nº
4, lado esquerdo, na Presidente Vargas. Apareça por lá.
—
Ótimo.
Vou aparecer, mas agora não. Estou de mudança.
—
Se
não for indiscrição, pode-se saber para onde?
—
Não
sei ainda. Moro no viaduto de Japeri, aliás muito confortável, mas
compreende, né? Um pouco longe. Procuro um na cidade.
—
Já
experimentou Botafogo?
—
Fui
eu que inaugurei. Era uma habitação deliciosa, aliás duas, com
vista panorâmica, banho de mar em frente etc. Mas sabe o que
aconteceu: estragaram aquilo, botaram jardins, espelhos d’água…
—
É.
Estão sempre atrapalhando.
—
Espelho
d’água, vá lá, serve para a toalete. Mas o jardim…
—
Jardim
não é bom para secar roupa?
—
Em
tese. Mas há sempre um guarda querendo defender as plantas,
implicando com os moradores.
—
Tem
razão. Na vida, o essencial é paz.
—
Também
acho. Folgo em saber que estamos de acordo neste ponto fundamental.
Mas, sabe? Os viadutos estão difíceis.
—
É,
ouço dizer. Mesmo havendo tantos por aí? — Todos lotados. Dizem
que onde cabem três cabe mais um. Eu discordo. Por essa teoria, onde
cabem vinte, cinquenta, mil, cabe sempre mais um. E os viadutos
tornam-se inabitáveis, ficam iguaizinhos aos edifícios, o que,
francamente, caro colega, não é vantagem.
—
Vejo
que o amigo aprecia a solidão.
—
Solidão
a dois, a três, eu aprecio, quando os colegas sabem viver em
comunidade. A gente não está nem sozinha nem com a multidão.
Equilibrado. Cada um cuida de si, e reina ordem no viaduto. O que eu
não suporto é viaduto desorganizado. Sou muito exigente neste
particular.
—
Estou
vendo que lá em Japeri o senhor deve ser uma espécie de síndico.
—
Que
síndico? Quem falou em síndico? Nós três nos autogovernamos. Eu,
que atendo por Quilo-e-Meio, seu criado (não cheguei a crescer
muito, em todo caso não me chamam de Meio-Quilo), o Vai-por-Mim e a
Marlene Garbo.
—
Por
que Marlene Garbo? Não é acumulação?
—
Porque
ela tem as pernas da Marlene Dietrich e o jeito da Greta Garbo. A
combinação é genial, sabe? Tem vezes que a gente chama ela de
Margá. Santa mulher. Já teve os tubos, viajou pelaí, não guardou
nem pinta de grã-finagem.
—
E
o Vai-por-Mim?
—
Não
tenho queixa dele. Só que anda com mania de jogar na Bolsa, nosso
viaduto está cheio de balancetes, prospectos, gráficos. Tenho medo
que ele fique rico, daí a pouco começa a botar banca.
—
Dê
uns conselhos ao Vai-por-Mim.
—
Dei.
Ele sonha em descobrir jazida de tório em Japeri, para fundar o
Banco Nacional de Habitação em Viadutos, Pontes e Congêneres. Não
deu sorte na Loteca, hoje diz que o plá é investir. Eu preveni a
ele: Ficando rico, a primeira coisa que você vai fazer é cobrar
aluguel nos viadutos.
—
Os
viadutos são do Estado.
—
E
daí? Até o Estado perceber, ele já dobrou a fortuna. O colega
desculpe, mas isso é safanagem.
—
Diga
ao Vai-por-Mim que apareça aqui no São Sebastião, para batermos um
papo.
—
Vai
tirar essas minhocas da cabeça dele?
—
Não
sei… A ideia me parece aproveitável. A socialização dos
viadutos, uma cadeia nacional de Hilton dos homens e mulheres
independentes… viadutos bem funcionais, o abrigo ao alcance de
todos… Um problema social que se resolve…
—
Sem
essa! Eu a querer salvar o Vai-por-Mim, e o colega pensando em tirar
partido da loucura dele! Acabando com a paz, a relativa paz que ainda
se goza nos viadutos! Não conte comigo e passe muito mal, traidor!
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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